Queimando olho

Domingo de manhã eu queimei meu olho esquerdo. Eu não estava brincando com fogo, nem olhei um eclipse sem raio-x. Não teve calor, nem chamas e nem foto-ofuscamento. Foi uma queimadura química provocada por agentes tipo C-Corrosivos.
Traduzindo a situação, eu guardei a manhã de domingo para tirar fantasmas das telas de serigrafia. Os fantasmas são manchas químicas e gordurosas que se fixam nas telas, e ainda que não dê nenhum problema, elas podem dificultar a fixação da emulsão fotossensível, fazendo com que a tela abra nas regiões frágeis e a impressão fique manchada.
Eu comprei o Remoclean Removedor Mono, comprei luvas de neoprene resistentes à corrosão, comprei óculos de segurança e máscaras. Foram 3 sessões de limpeza, e a ideia era tirar os fantasmas de quase todas as telas desgravadas que tenho aqui no meu estúdio. Nas duas primeiras sessões ocorreu tudo certo. Passo o produto, aguardo 15 minutos, jateio com água e a tela fica extremamente limpa, sem vestígios que fora outrora utilizada.
Na última sessão, domingo, me aguardavam as maiores telas, que eu uso com menos frequência e por isso eu estava em um clima mais tranquilo e, aparentemente, mais desatento. Eu logo coloco os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e já inicio o processo de passar o Remoclean nas telas grandes. Eis que o primeiro momento horrível de 2024 aparece.
A esponja de nylon agarra na lateral de uma das telas e ricocheteia em minha direção parte do produto químico, corrosivo, ácido. Foi a pior maneira de descobrir que eu havia me esquecido de colocar os óculos de proteção. Várias coisas passaram pela minha cabeça. Com o impacto e o início da ardência, minha primeira reação foi tapar o olho com a mão e correr em direção a um tanque. Segurei minha pálpebra aberta e deixei água corrente escorrer no olho esquerdo, que ardia em chamas. Não, eu não enxergava nada, tudo embaçado à minha frente. O nervoso que eu tenho com qualquer coisa que envolve olhos foi deixado de lado para que eu pudesse salvar minha visão. Meu olho ardia como se fosse uma bola de fogo.
Após alguns minutos debaixo da torneira do tanque, entrei em casa para enxugar a cara enquanto acordava minha companheira com os dizeres: “ACORDA, ME LEVA PRO HOSPITAL, QUEIMEI O OLHO!”.
Foi difícil compreender que eu poderia perder parte da visão naquele momento. Eu lacrimejava muito, e eu ainda não sei se eram lágrimas provenientes da resposta do corpo à queimadura ou ao choro pela ardência e pelo vacilo que eu tinha dado naquela manhã. Minha companheira levanta correndo, estava conversando com alguém no celular. Ela me pergunta “Qual produto que é? Quais os ingredientes?” e eu só consigo responder que eu não sei, só sei que é corrosivo. Ela conversa com uma amiga que é oftalmologista, e nós buscamos por informações na embalagem do Remoclean. R20/21/22-35 S 7/9 – 26-36/37/39-45. Esse código são as únicas informações que aparecem. Acessamos o Boletim Técnico no site da empresa fabricante, e na seção dos ingredientes um belo “Segredo de Fábrica” frustra nossa intenção de descobrir como tratar a queimadura.
Meu olho ardia, e eu seguia segurando minhas pálpebras abertas debaixo da torneira aberta com água corrente. Menos mal que, apesar da ardência e do embaçamento, eu conseguia enxergar alguma coisa. Saímos de casa, seguimos para o hospital para consultar com um plantonista. Após um tempo de espera razoável tenho meu olho esquerdo analisado por um profissional.

Ele me diz que eu tive sorte, pois havia apenas uma irritação na parte branca do olho, nada atingiu córneas.
Ele me disse que eu ainda ficaria uns dois dias com muito incômodo no olho.
Ele me disse que eu deveria pingar um colírio anti-inflamatório de 6 em 6 horas, durante 5 dias.
Ele me disse que eu deveria pingar colírio comum de hora em hora, pra ajudar na lubrificação.

Hoje é meu último dia de colírio anti-inflamatório. Ele arde. Eu nunca tive o costume de usar colírio. Não me agrada o gosto que surge na garganta após pingar qualquer colírio nos olhos. Eu não sabia pingar, sempre errava a mira. Depois de alguns dias pingando, já me tornei expert em pingar somente no olho. A prática leva à perfeição. E eu que jurei que sairia do hospital com um tapa-olhos, saí apenas com uma sensibilidade à luz. Não conseguia ver telas, doíam meus olhos. Eu tinha uma sensação esquisita de que havia areia debaixo da minha pálpebra superior. Meu olho inchou, ficava fechado bastante tempo, e as pálpebras grudavam com a quantidade de remelas que surgiam. Na terça-feira meu olho amanheceu aberto, com muito menos incômodo, mas ainda lacrimejando bastante.
Tudo passou pela minha cabeça nesses dias para cá, tudo.

Eu ainda não tive coragem de limpar os fantasmas das telas maiores.

Animaçãozinha relax de momentos tensos