Pulo da janela para o telhado. Sigo adiante sem vacilar os passos. Subo em uma clarabóia, vejo um cachorro dormindo no chão ao lado da cama, seus donos não se importam muito com ele ali. Ele fareja algo, eu olho, sorrio, e sigo meu caminho. Não me importo muito com o que acontece ali. Piso de telha em telha sem fazer barulho. Meus passos são leves e firmes. Consigo saltar sem fazer ruído em um parapeito estreito. Caminho com cuidado. Apesar de experiente, qualquer coisa pode acontecer. Impulsiono meu corpo por uma haste metálica de sustentação, me agarro ao fio e consigo chegar no próximo edifício. Subo pelo relevo que os tijolos deixam na superfície, quase quatro andares até algum lugar seguro. Passo por uma entradinha próxima de uma janela cheia de vasos de plantas. Consigo passar sem derrubar. Entro em uma residência grande, raspo um pouco minhas unhas no sofá Ônyx, ele me pareceu ter uma textura interessante, mas só era feio e sem graça mesmo. Atravesso toda a casa até a varanda, ela sempre está aberta para entrar uma ventilação natural, uma brisa vinda do mar que toda noite dá as caras. Da grade da varanda eu salto para a palmeira que está no pátio. Da palmeira, me agarro em um cipó e me encontro com Marquinho, um sagui que me acompanha nos furtos durante a noite. Marquinho me disse que conheceu um novo lugar, maravilhoso. Marquinho diz que hoje é uma noite especial. Subimos pela mata, pulando de galho em galho, às vezes um telhado surgia, mas nada que impeça nosso trajeto. Somos ágeis. No topo de uma castanheira milenar, vemos a lua cheia e nos deliciamos com o mais belo visual daquela mandala luminosa que se agigantava em nossa frente. Estou feliz por ter vivido o suficiente para ver isto. Adormeço. Sonho com várias viagens e lugares, outros seres que habitam este espaço. Meu sonambulismo me deixa fabulado com todas as coisas que conheço nessa passagem. Estou com muita preguiça de levantar, por aqui ficarei. Foda-se o mundo.
La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fuji 200
Pensei
Hoje é o dia mais chuvoso do ano e eu irei retratar isto. Pensei em fotografar enchentes, mas não é o dia com maior volume de chuvas do ano. Pensei em registrar cada gota que escorre nas superfícies urbanas, mas me pareceu utópico demais. Pensei no espelho d’água gerado pela poça, que reflete perfeitamente a sede luxuosa do governo enquanto pessoas pisam em cima deformando a imagem, mas me pareceu uma crueldade clichê demais. Pensei no jorro de água que os automóveis lançam contra os pedestres, mas me deu ódio só de pensar na cena. Pensei na serenidade que são as gotas caindo no piso e deixando marcas que rapidamente somem, mas tenho certeza de que uma fotografia apenas não bastaria para isso. Pensei em registrar o quão carregadas estavam as nuvens, mas a captação da lente não dava conta de chegar até lá. Pensei em enquadrar a cena de um grupo de pessoas se espremendo em um abrigo na parada de ônibus, esperando um transporte que parece demorar mais a cada dia, mas percebi que ninguém mais usa ônibus em dias de chuva. Pensei em captar o momento em que um jovem sacode um galho de uma árvore, o que faz com que seu irmão receba todas as gotas que caíram com o menear dos outros galhos, mas não fui rápido o suficiente. Pensei naquela gota que escorre de cada folha, nos motociclistas uniformizados com trajes que protegem da chuva, com vendedores de sombrinhas nas esquinas, com aquela criança que olha pro céu e tenta desviar-se das gotas que caem, ou mesmo com aquelas pessoas que ainda não sabem se correr molha mais, menos ou igual que caminhar na chuva. Pensei em cantar Colligere, que cita Fernando Pessoa, quando o vento cresce parece que chove mais. Mas vi alguém tentando registrar o mesmo que eu, com mais certezas que dúvidas.
Vejo o que ele tem na mão, me animo. Me vem uma felicidade extrema que não consigo me conter. Vou até ele e sinalizo que concordo com sua atitude. Ele coloca algo no meu pescoço enquanto olho para o Breno ao meu lado querendo que seja feito o mesmo com ele. Nós, afobados, saímos correndo até a porta de vidro. Ele abre e, por mais que façamos força, não conseguimos correr livremente. Vamos tentando caminhar, mas Breno não consegue andar em linha reta e toda hora me fecha. Breno também faz com que nossas guias se enrosquem, e isso dificulta o andar. De vez em quando eu perco a paciência com Breno, mesmo ele sendo muito maior que eu. Eu cheiro alguns lugares, ele vem atrás de mim fazendo o mesmo. Fico me perguntando se ele tem a própria personalidade e interesses. Deixo um pouco de urina por onde passo. Gosto de marcar alguns lugares e deixar registrada a minha presença ali. Breno me imita em tudo. A cidade é viva, e nós que fazemos ela viver. Vejo algumas coisas no trajeto, cheiro e não me agrada muito. Já Breno morde tudo antes de saber o que é. Ele morde, baba e cospe fora, não possui muitos critérios. Seguimos pela avenida vendo todo o movimento de automóveis barulhentos, ao mesmo tempo que acompanho o voar silencioso de uma borboleta. Isso me detém um pouco no processo de contemplação. Breno não enxerga nada disso. Passa por cima de qualquer coisa que está no seu caminho. Na esquina um cheiro chama a minha atenção. Percebo que Breno sentiu a mesma coisa. Nos entreolhamos e fomos correndo, forçando o chão para chegar lá o mais rápido possível. Era um gramado a meia altura, recém cortado, cheirinho de mato molhado, algumas flores solitárias enfeitavam. Eu olhei para Breno, ele me olhou. Fomos até lá, subimos, cheiramos o melhor ponto possível, demos duas voltas em torno de nós mesmos e soltamos o som mais gostoso do mundo: “-ahhhhwwwwff!”. Sim, o único em que concordamos é que cagar na grama é o melhor momento do dia.
Quando estou caminhando, correndo, pedalando, me locomovendo de uma maneira geral, olho para o horizonte. Acho interessante como que as coisas no primeiro plano passam de maneira muito mais rápida que o fundo da cena. Fico pensando no que são nossos sonhos, desejos, o que queremos e o quanto nos propomos a buscar o que almejamos. Fiquei pensando nessa analogia com os planos da paisagem. O que está muito próximo, chega rápido, mas é isso, não tem nada demais além do que está na na cara. Logo é substituído por algo tão efêmero quanto. O que está a médio prazo, passa a uma velocidade menor, podemos ver com calma, analisar, escolher, temos tempo para observar. O primeiro plano, veloz, às vezes atrapalha um pouco observar o que está a média distância, mas não impede. Já o que está no fundo, no horizonte, passa tão devagar que nem parece que estamos nos movendo. Ali temos um amplo leque de possibilidades até conseguir chegar lá. E pode ser que nem seja lá onde queremos chegar. Tudo depende do caminho. Mas é um ponto de fuga, algo onde miramos. Talvez seja por isso que a utopia seja tão metaforizada como a ideia do horizonte. Ele está longe, mas está ali. Só saber ir com calma.
Já estão disponíveis na loja virtual as impressões em serigrafia que fiz em parceria com o Baruq. São registros analógicos que ele realizou em sua passagem pela europa em 2024, na ocasião do lançamento do livro “Casa Encantada”. São cartazes tamanho A3, papel preto e áspero, impressão a duas cores (branco+cinza), ~140g.
Centro Social Okupado Kike Mur, em Zaragoza.Trincheras de Orwell, palco da resistência antifascista durante a Guerra Civil e Revolução Espanhola
No segundo experimento impresso desta série de fotografias da rede La Idea, novamente uma fotografia da Jay foi escolhida. O processo, como explicado no post anterior, foi bem simples. Juntamos uma equipe curatorial especializada, composta por eu, minha mãe, minha companheira, minha irmã e minha cunhada, e votamos nas fotografias que mais gostamos e que queríamos ver impressas. Desta vez, a escolhida foi a televisão abandonada no trilho. Eu gostei desta foto por vários motivos. O primeiro, e assim como na foto anterior, nota-se o vestígio da presença humana na paisagem, na cena. O rastro deixado em algum caminho, afirmando que alguém passou por ali e deixou algo. Diferentemente da foto anterior, que traz alguns elementos muito mais culturais (a meu ver), esta carrega em si o descarte de algo que não pertence mais ao nosso tempo. Um objeto que hoje possui apenas valores estéticos e saudosistas, largado para a destruição do trem que se aproxima (será que este trilho ainda é utilizado?). Não sabemos se a locomotiva virá mesmo, se o objeto será destruído, mas ele está situado neste lugar indeciso sobre seu futuro. A boa utilização das linhas de fuga proporcionadas pelo trilho traz essa sensação de passagem, de caminho, de que algo ainda irá acontecer. Uma fotografia marcante, cujo olhar sensível da Jay carrega várias de nossas memórias e imaginações.
Especificações técnicas
Impresso com tintas Gênesis Hidrocryl Cromia em papel Canson 200g (branco e creme) Tamanho A3 – 42×29,7 cm – formato paisagem Preparação: 300 pixels/polegada, 20 linhas/polegada, formato elipse Tela: Poliéster amarelo, 90/77 fios, chassi de alumínio Rodo: Cabo de madeira, borracha amarela
Não é de hoje que eu quero testar minhas habilidades em fazer impressões de quadricromia CMYK utilizando a serigrafia artesanal que é praticada aqui no meu atelier. No passado, fiz uns testes com fotografias da Martha Cooper e uma foto de internet que eu não sei a autoria. O resultado ficava legal, o público curtiu e saíram muitas cópias. Mas este ano consegui colocar em prática algo que era de meu desejo há muito tempo, e que eu tenho a impressão de que irá dar um gás nesse processo: A associação com pessoas que fotografam. Sim, aqui na região tem muita gente que fotografa cenas belíssimas, tem olhares sensíveis, possuem técnicas e gosto pela atividade. Nada melhor para este projeto do que começar a imprimir em serigrafia as fotografias destas pessoas. O processo foi simples. Primeiramente eu fiz um convite para a artista Jay, que fotografa de forma analógica, pinta aquarelas, vestuário, faz grafite, ou seja, multiartista. Ela tem um olhar bem sensível, a meu ver focando muito em coisas do cotidiano, objetos, passagens, curiosidades e suas fotos sempre me chamaram atenção. Conversei brevemente com ela sobre este projeto e ela topou no hora. Ela fez uma curadoria de algumas fotos que ela gostaria de ver impressas e me enviou através de uma nuvem. Aqui, juntei uma equipe nada especializada composta por eu, minha mãe, minha companheira, minha irmã e minha cunhada, e fizemos uma pequena votação das que nós gostamos mais. Acabou que não conseguimos decidir sobre apenas uma, e eu acabei imprimindo duas fotografias, ainda com chances de imprimir uma terceira. Porém, serão tópicos para postagens futuras. Depois de trabalhar no Photoshop, fazer a separação de cores, regular os devidos ajustes, gravei as telas e logo comecei o processo de impressão.
Sobre a foto
Eu não posso falar pelas outras pessoas que participaram do processo decisório, mas irei soltar algumas palavras sobre o porque eu votei nesta foto. Eu olho para a imagem e vejo uma cena de interior, comum, e que, de alguma forma, é universal. Um crânio de boi no poste, de olho em tudo que acontece. Espanta o que deve ser espantado, atrai o que deve ser atraído, inclusive nossos olhares. O crânio ocupa metade do quadro, e a outra metade o céu divide espaço com fiações do poste. Tudo está interligado. Cena pacata e cativante, bruta e serena, ofensiva e relaxada…
Especificações técnicas
Impresso com tintas Gênesis Hidrocryl Cromia em papel Canson 200g (branco e creme) Tamanho A3 – 42×29,7 cm – formato paisagem Preparação: 300 pixels/polegada, 15 linhas/polegada, formato diamante Tela: Poliéster amarelo, 90/77 fios, chassi de alumínio Rodo: Cabo de madeira, borracha amarela
Escuto um barulho que me acorda. Abro os olhos, ainda estou deitado nesse objeto macio. Gosto de dormir nele porque meu corpo se encaixa muito bem e minha cabeça fica apoiada nessa parte lateral. Daqui eu consigo ver esses dois gigantes que roncam muito alto. Um deles se levantou para tomar líquido transparente e acabou trombando em algum objeto de madeira no caminho. Foi esse barulho que deve ter me acordado. Não tá na hora de levantar ainda, aquele aparelho eletrônico ainda não tocou a música horrível. Eu adquiri esse péssimo hábito de não conseguir mais dormir depois que a música horrível toca. Para me vingar, eu subo no quadrado macio que os gigantes dormem e faço questão de raspar minha língua na cara deles. Se eu não posso dormir, eles também não poderão. Raspar a língua na cara também vai fazer com que eles desliguem a música horrível, essa aberração tonal que toca todo dia de manhã… Sigo deitado, apenas observando a horário que a música horrível vai tocar. A partir daí eu posso seguir com minha rotina. Os gigantes são muito frágeis no bueiro gigante, e eu faço questão de acompanhá-los quando eles estão lá. Eles vão todos os dias no mesmo horário. Não sei como aguentam essa rotina. Não sei como eu aguento essa rotina. Eles também possuem um aparato fino para usar após se levantarem do bueiro gigante, eu ainda não sei para que serve. Gosto apenas de desenrolar ele todo pra tentar entender os porquês da existência disso. Sigo sem saber. Na cozinha o líquido transparente é colocado num objeto de metal, depois começa a pegar fogo por fora enquanto borbulha por dentro. Enquanto isso vou para a sala aproveitar o sol da manhã. Me disseram que é a melhor vitamina D que existe. Gosto de sentir os raios solares adentrando meus pelos enquanto sinto o cheiro agradável do líquido transparente se tornando líquido preto. Nunca me deram isso para beber, só me dão líquido transparente. Talvez seja uma coisa de gigantes. Começou a ficar quente demais, me levanto e vou para a sombra. Faço isso enquanto observo os gigantes bebendo líquido preto e comendo algo que eles não me deixam comer. Eles proferem sons em concordância, até parece que se entendem. Um emite um som enquanto o outro não emite som. Às vezes eles emitem esses sons se direcionando a mim, como se eu soubesse do que eles estão proferindo sons. Ambos saem desse local, fico aqui pensando no que devo fazer em todo esse tempo que ficarei sozinho. Tem vários objetos macios onde posso deitar, mas não sei se quero dormir agora. Tem um buraco no local ao lado, parece que tem algo acontecendo ali. Acho que será um bom passatempo observar dentro do buraco. Fico de saco cheio, deito um pouco em cima de um objeto de madeira, só que ao lado da vegetação. Vou na cozinha ver o que está de fácil acesso e que mate minha fome. Não há nada. Até tento saltar na borda do objeto de madeira, mas não há migalhas desta vez. Olho pra sala e algo brilha, chama minha atenção. Vou para lá correndo e me deparo com um objeto de plástico no chão. Ele possui algum líquido dentro, mas tem uma coisa de plástico que parece impedir que o líquido saia. Me coloco a missão de retirar esse plástico que impede o líquido de sair. Isso ocupa boa parte do meu tempo sozinho. Meus dentes são fortes, mas acho que tiveram dificuldades com esse objeto. Quando eu consigo remover o plástico, o líquido escorre no chão. Eu não sei o que fazer, como que se limpa uma sujeira? Devo raspar a língua? Os gigantes devem voltar e eu não sei como esconder isso. Deito em cima como se a sujeira fosse um objeto macio. Mas logo me levanto por me sentir incomodado com a sensação do líquido na pele. Tento raspar a língua, mas o gosto não é legal e eu acabo desistindo. A tensão me deixa imóvel e eu não sei o que fazer. Olho para a sujeira que o líquido fez e a fico encarando, maquinando possibilidades. Adormeço sem ver. Escuto um barulho na rua e desperto rapidamente. É o barulho do objeto de metal que protege o buraco que entra o equipamento mecânico. Os gigantes estão chegando. Me lembro da sujeira e começo a correr e latir, sem saber o que fazer. Não encontro a sujeira, talvez alguém tenha limpado. Tô aliviado. Corro para o buraco por onde os gigantes entram no local. Estou feliz, eles não perceberão que fiz sujeira e eu não fico mais sozinho.
La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X PB 200
Na rua
Escuto alguém me chamar lá fora. Vou correndo para entender melhor o que está acontecendo. Me aproximo da grade e vejo a Pequetita passando pelo lado de lá da rua. Ela anda meio pomposa, empinando o bumbum pro pequeno rabo ficar mais aparente. Mas esse hábito faz com que ela caminhe dando alguns pequenos saltos. Seus pelos são de cor clara, contrasta com a calçada escura. Pequetita me avista e, sem cumprimentar, grita em minha direção que a árvore da rua foi contaminada. No meu tempo de reação eu só consigo perguntar de volta quem foi o autor da contaminação. Ela grita que não sabe, mas foi alguém novo. O perfume que estava na árvore era diferente de qualquer outro lugar da região. Eu agradeço e aproveito o dia claro para me deter no sol por alguns minutos. Logo após a Pequetita, o Caquito passou pela rua. Ele me viu, mas fingiu que eu não estava ali. Prefiro contar sobre a contaminação para quem quer saber, Caquito me esnobou, não gostei. Sigo olhando para a rua, Suzi passa e eu aviso que a árvore está contaminada. Ela me responde, diz que a Pequetita já avisou a ela, mas que ela precisava ir na árvore conferir a nova fragrância. Eu digo que só irei de noite, mas que gostaria de saber as atualizações no decorrer da tarde. Suzi segue caminho e se detém na árvore da rua. Eu fico observando. Ela sente o cheiro e olha para mim, confirmando que é alguém diferente. Isso me deixa mais curioso. Tinoco vem descendo a rua. Ele é mais parrudo, curte subir numas árvores. Já fiquei sabendo que ele até já subiu muro. Da rua, eu acho que ele é o mais ágil. Mas eu o vejo pouco, ele vive um pouco mais distante, mas sempre cumprimenta quando passa por aqui. Uma vez ele disse que me traria um pedaço de osso e deixaria aqui na minha porta, eu agradeci, mas recusei a oferta. Ossos não me fazem bem. Tinoco parou na árvore, trocou algumas palavras incompreensíveis com Suzi, e me olhou. Será que a Suzi falou de mim? Tinoco desceu mais e parou aqui em frente, perguntou o que eu já sabia do caso da árvore. Eu disse que havia uma nova fragrância que contaminou a árvore e que era de alguém desconhecido. Ele me confirmou a informação, disse que eu deveria ser mais enxerido pra coletar informações. Eu disse que tentaria, mas nem sempre dá tempo. Tinoco fingiu que estava caçando lugar para defecar enquanto conversávamos. Depois de um tempo despistando, ele seguiu viagem. Ver ele despistando me deu vontade de mijar. Aqui neste espaço tem plantas, e eu posso liberar o xixi aqui sem perder as atualizações sobre a contaminação da árvore da rua. Fiquei algum tempo olhando para a árvore da rua, o que poderia ter contaminado ela? Preto e Branco estão subindo a rua. Eu acho que eles são irmãos, mas não tenho certeza. Eles são parecidos, exceto pela cor curiosa de seus pelos, um é claro e o outro é escuro. Eu nunca sei quem é quem. Quando os vejo subindo eu só os chamo de Zé. É muito mais fácil e ambos atendem. Eu aviso que a árvore da rua foi contaminada por alguém desconhecido. Eles apenas acenam, não dizem nada de volta. Acho que eles têm medo de gritar muito alto e serem punidos por isso. Pelo menos fiz minha parte em avisar. Eu apoio a cabeça na grade e me concentro na árvore da rua. Quero sabe em primeira mão a origem da fragrância que contaminou a árvore da rua. Mas depois de tanto tempo, não avisto nada de anormal. Pingolino mora em frente à árvore, em breve tá na hora dele sair pra dar uma volta. Talvez ele tenha mais informações sobre o caso. Roger passa antes, avisando que talvez não seja bom verificar o odor, pois se contaminou a árvore, sabe-se lá o que pode fazer com a gente. Margarete diz que é uma fragrância meio doce, estranha, que deixa a gente enjoado. E se todos adoecermos por causa dessa contaminação? Avisto o portão abrindo e Pingolino está dando as caras, finalmente. Ele sai, analisa a árvore, e começa a buscar possíveis ouvintes pro seu caso a solucionar. Ele me avista e vem na minha direção. Ele me diz que viu algo preto sair de um negócio vermelho, cair na árvore da rua e começar a borbulhar. Foi isso que contaminou a árvore. Não foi um desconhecido, porque não foi um de nós. Eu tento ficar mais tranquilo em saber que não tem desconhecidos contaminando a árvore da rua, mas me preocupa esse líquido preto borbulhante e adocicado que contamina tudo…
La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100
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Era meados da tarde. O sol vinha na diagonal, forte e intenso. Estou entre automóveis, seguindo a linha tracejada branca que separa as pistas. Tenho olhar atento para setas piscadas e movimentos bruscos. Qualquer coisa pode significar minha queda. Tenho receio de ultrapassar, mas me sinto seguro para acelerar quando vejo os olhos do motorista pelo retrovisor. Ele me observa por tempo curto, segundos que me indicam a segurança da ultrapassagem. Ele me vê, desloca um pouco para a direita deixando vão aberto. Não sei se ele está preocupado comigo em cima da bicicleta e o estrago que eu poderia sofrer em um possível choque, ou com a possibilidade da lataria do veículo dele ser arranhada com meu contato. Eu passo, seguro e confiante, acelero a rotação porque vem uma reta plana. Não há semáforos, mas ainda assim o trânsito de veículos automotores segue em ritmo lento. Atrás de mim uma moto se aproxima. Não há como sair da frente, não há por onde escapar. Eu acelero mais ainda a rotação, pois vejo um vão livre por onde a passagem flui. Conto com minha destreza em costurar para compreender quais os lugares onde posso passar sem maiores problemas. Retrovisores pareados, fluindo a um ritmo lento me trazem tensões, mas ainda consigo passar apertado entre automóveis. A moto fica para trás. Vejo um longo corredor aberto, livre de obstáculos. Foco no ponto de fuga que surge na linha do horizonte, olhar concentrado para a utopia. O vento bate forte na minha cara, secam meus olhos ao mesmo tempo que deixa escapar uma lágrima involuntária. Eu entrefecho as pálpebras para melhorar a visão. Um caminhão ocupa mais espaço de pista que o automóvel a seu lado. Aproveito a brecha deixada por um automóvel, olho para trás, rápido e discreto, e consigo quebrar uma diagonal para mudar de corredor. O carro se assustou e hesitou em frear, mas eu já havia passado. O coração batia forte, a adrenalina estava alta. A respiração começa a falhar pelo esforço, pelo calor e pela poluição. Opto por dar respiradas mais longas, puxando pelo nariz e soltando pela boca. Tarefa difícil de se fazer quando se já está cansado e ofegante. Mas ainda tem muito trajeto pela frente. Neste corredor os automóveis são mais impacientes, mudam de faixa como se fosse adiantar alguma coisa. Não consigo manter velocidade constante. Freio, acelero, freio, acelero, acelero mais, dou a volta. Alguns carros não conseguem mudar de faixa por completo e a parte traseira come parte do corredor. Eu desvio e sigo com rotação intensa. A faixa branca tracejada atropela tampas de bueiro. Me desagrada muito o relevo dos bueiros no meio da pista, instabiliza a bicicleta, fico inseguro. Quero retornar para o outro corredor, mas não encontro espaços para fazer a manobra. Além do que, várias motos já fizeram um grande corredor na pista de lá, com suas buzinas irritantes e escapamentos barulhentos. Decido seguir por cima dos bueiros, pelo menos eles estão com tampa. Mais adiante, vejo um semáforo fechado. Começo a observar se existe algum sinal de que ele irá abrir e eu não precise frear. Estou atento à qualquer mudança de padrão da ordem contextual vigente. Na rua transversal os carros começam a ir mais devagar, o semáforo de pedestres começa a piscar no vermelho, escuto alguns câmbios se encaixando com uma embreagem mal pisada. Escuto controles de embreagem desnecessários em uma reta plana. Aos sinais eu acelero mais ainda a rotação. Confiro se não há pedestres retardatários e me concentro nos próximos movimentos. Quero cruzar todas as pistas, passando pela frente de todos os automóveis que ainda não arrancaram, e acessar a rua transversal. Minha velocidade me permite, minha disposição me encoraja. Eu me arrisco e vou, livre e confiante. Acesso à rua, e um novo corredor se inicia. As pequenas vitórias duram pouco tempo para serem contadas em seus mínimos detalhes. *** Era fim de tarde, início da noite. Quase naquele momento que gostamos chamar de “luscofusca“. Nem tão claro a ponto de conseguirmos enxergar tudo, nem tão escuro a ponto da luz artificial fazer alguma diferença na luminosidade. Eu andava tranquilo por um viaduto, levemente inclinado para cima. Várias pessoas passavam por mim, todas desconhecidas. Ninguém me cumprimentou, não cumprimentei ninguém. Mal nos olhávamos nos olhos. Ninguém me observou, eu não observei ninguém. Eu olhava para o que seriam meus próximos passos. Olhava os automóveis trafegando em câmera lenta, ora engarrafados. Via os edifícios que se aproximavam a cada passo. Olhava toda a matéria morta que se encontrava ao meu redor. Seguia meus passos sem olhar as pessoas. A gente fica duro quando caminha pela cidade grande…
La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X 200 BW
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– Olá, bom dia! São ameixas? – Hola mijita, como vá? Son ciruelas, te salen diez Reales la bolsita. – Mas isso não parece seriguela, parece mais ameixa… – Pues son ciruelas… Si quieres, las puede elegirlas tu. – Obrigada… Posso escolher qualquer uma? – Si, pero estas de la derecha las tengo que botar… – Botar na sacola? – No, las tengo que botar, tirar! – Botar na sacola e tirar da banquinha? – No, no, no! Ya están malas. No sirven. Hay que desecharlas. No van para la bolsita! – Hummm… Entendi… Dez Reais, né? – Diez por la bolsita llena. – É isso mesmo! Vou pegar o dinheiro!! – Que se sinta segura, pues te cuida el oso! – Que osso? – El osito, te mira y te guarda. – Mas onde que tem osso aqui? É tipo um osso da sorte? – No sé si de suerte, pero es una buen línea pa’ que el cliente se sinta seguro! – E onde que eu acho esse osso? – Te mira desde el vidrio. Le regale una buen sonrisa! – Óh!! Hahahaha, não tinha percebido. – A toda la gente él sabe como sacar una sonrisa.
La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Samsumg 200 color, vencido.
Eu sei o que estou fazendo, Roberto!
– Você está mexendo no lugar errado, Silvano! Essa mangueira liga diretamente no motor! – Mas eu lembro de como tava antes! O motor pifou, eu vim aqui pra abrir o capô e eu vi essa mangueira soltar! – Mas eu tô te dizendo que ela liga diretamente no motor. Não faz sentido ligar no reservatório de líquido arrefecedor! – Não tem líquido arrefecedor aqui, esse motor tem radiador, ele usa água! – Água? Não tem dessa não! Nenhum carro produzido depois dos anos 60 usa água. Água só se for pra limpar o pára-brisa! – Deixe eu fazer o trem aqui Sô, cê fica aí dando pitaco errado. Eu sei como estava antes, isso já aconteceu outras vezes. – Não Silvano, cê tá tentando enfiar uma mangueira onde não tem lugar pra enfiar, deixa de ser ignorante! – Se bem que o problema parece estar na válvula esquerda, olha como ela está diferente das outras! – Com certeza não é esse o problema, cê fica testando coisas que não tem a ver nada com nada, e não consegue enxergar o problema principal! – Bixo, eu consegui arrumar das outras vezes numa boa! Só porque você tá aqui que esse trem num arruma. – Agora a culpa é minha? – Sempre foi. Tô te falando que já rolou isso antes e eu consegui arrumar… – Arrumou tão bem arrumado que deu problema de novo na mesma coisa. Para de fazer gambiarra, Sô! – Eu sei o que tô fazendo, Roberto! Faria mais rápido se você num tivesse aqui me enchendo! – O sinal já abriu e fechou 20 vezes e você continua aí achando que sabe de alguma coisa. – Aqui cê dêxa! Puta merda, eu mereço…
La Idea, 2023. Canon BF-800, Fomapan BW 100
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Outro dia eu me dei conta de que eu nunca me vi. Faço uma ideia de como seja minha aparência, mas eu mesmo nunca conseguirei saber realmente como sou. Bom, através do tato consigo sentir meu rosto, a textura da minha pele, as curvas salientes, meus curtos pelos arrepiados ou a barba grossa. Consigo sentir a gordura da pele, a maciez da carne ou a dureza do osso. Consigo sentir as lágrimas saindo dos meus olhos e escorrendo pelas bochechas, enquanto minhas mãos tentam enxugá-las. E, talvez, próximo disso seja tudo que conseguirei experimentar e descrever sobre minha aparência real. Quisera eu saber realmente como sou, pois apenas me conheço virtualmente. Necessito da lente de uma câmera, de uma superfície espelhada, dos olhos de outra pessoa que me observa por alguns instantes e marca no papel o que foi registrado em sua memória sobre a minha aparência. Para eu saber como sou, dependo sempre de outra pessoa, de outro objeto, de algo que capte a luz refletida pelo meu rosto.
Outro dia, caminhando pelas ruas de BH, me deparei com algumas vidraças espelhadas. Ainda que eu tentasse fugir do meu reflexo, meus olhos sempre enxergavam minha imagem. Meus olhos são dois globos captadores de luz, dispostos na cabeça de uma maneira que captem luz de diferentes ângulos, e meu cérebro faz o serviço de juntar essas duas imagens em apenas uma imagem coerente. Nossos dois olhos enxergam muito mais do que a gente supõe ser real. Nossos olhos nos tiram da superfície plana e nos fornece algo de profundidade, de forma, de relevo. No reflexo das vidraças, alguma parte de mim sempre aparecia. Não consegui me esconder por inteiro, meus olhos me enganavam. Decidi registrar essa tentativa frustrada de não aparecer, de ver meu reflexo como eu me vejo.
Portava comigo uma câmera Olympus Pen-EE, com um filme PB Double-X, ISO 200, vencido. Através do visor posso ter apenas uma noção do que será registrado na película. O que eu miro não é o que a câmera capta. Eu sempre via algum reflexo de mim na vidraça, uma parte do corpo cuja luz não escapava aos meus olhos. A câmera, com sua lente única, apenas compreende o sentido de planificar a luz sob o mesmo ângulo. Ela não capta a luz como meus olhos. A fotografia me forneceu o momento de desaparecimento, de não me enxergar virtualmente, de não me enxergar mesmo com ajuda do espelho. Era pra registrar a frustração de enxergar uma imagem sempre virtual, e a câmera possibilitou que eu enxergasse o sujeito que se deteve alguns minutos para registrar o momento. Me encontrei na ausência.
Eu sou real, estou aqui, não me vejo. Todos me veem de alguma forma, sempre diferente do que eu imagino. Nesta fotografia, apenas o eu real, fotógrafo-artista-andarilho-flaneur-amador sem saber o que faz da vida, existe. Ou existiu naquele momento passado analógico.
La Idea, 2023
Tá curtindo as postagens? Rola de pagar um cafezinho pro autor, esse que vos escreve?
Hoje completam-se 35 anos de idade da pessoa com quem eu tenho maior tempo de amizade. Estudamos nas mesmas escolas, nas mesmas salas de aula durante vários anos, brincamos e aprendemos juntos, nos divertimos, brigamos, convivemos, fomos crianças felizes, adolescentes sonhadores, hoje somos adultos lidando (ou tentando lidar) com nossas responsabilidades. Jogávamos futebol juntos, ele muito melhor que eu. Jogávamos videogame juntos, novamente eu sempre perdia, rs. Talvez o esporte ou o videogame não fossem meu forte nessa época. Nos deslocamos por vários caminhos distintos e acabamos os dois no grande campo das artes. Ele ator, eu artista visual. Ambos educadores, pensadores, refletindo sobre o que nos afeta, sobre o que afetam os outros. Refletindo sobre nossas ações, sobre como fazemos política, sobre como podemos ir mais além, afetar mais pessoas, compartilhar nossas lutas, nossas resistências, nossas produções, ideias e ideais, sobre tudo que fazemos com essas 3 décadas e meia de informações acumuladas, desenvolvidas a partir de nossas experiências. Enfim, você é um exemplo para mim. Ainda não pudemos trabalhar nossa criatividade juntos, mas espero um dia que a gente consiga se organizar para esta tarefa. Sobre a gente, há uma foto inesquecível. Íamos na loja de fotografia revelar um filme. Faltava 1 pose, e o funcionário tirou uma foto nossa. Éramos jovens, 12, 13 anos, não me lembro. Ambos olhávamos para fora, para o mesmo local iluminado, olhávamos para nossos sonhos, nossos desejos, nossos futuros. Olhávamos para tudo que estava por vir. Essa foto é repleta de simbolismos, talvez por isso seja tão marcante toda vez que a vejo. Ela é emblemática em diversos sentidos. Penso na bifurcação que seguimos em nossos caminhos, e em como ela se juntou novamente, e se separou, e se juntou. Os olhares miram a mesma luz, ao mesmo tempo em que miram caminhos diferentes. As possibilidades são várias. Fico impressionado em como os registros nos dizem tanto sobre nós mesmos, sobre passados, presentes e futuros. Quantas são as pessoas que passaram pela minha vida, marcaram, afetaram, deixaram marcas, e desapareceram sem deixar rastros, e nós seguimos em frente, firme e fortes. Hoje, 19/12 é um dia especial por isso, foi quando você nasceu há 35 anos atrás. E talvez deva ser por volta do trigésimos aniversário seu que a gente passa junto, rs. Se não for, pelo menos o trigésimo sabemos que está próximo. Te amo cara!