Lapsos de Tempo #21

Paz

– Já separei todas as minhas roupas brancas pra celebrar a virada do ano.
Mas porque brancas?
– Porque eu desejo a paz mundial pro ano de 2026!
Poderia explicar a relação entre essas coisas?
– Claro. É super simples. As cores simbolizam nossos desejos para o próximo ano. O branco simboliza a paz. O amarelo é a riqueza. O rosa a felicidade. O vermelho é a paixão. O verde é a esperança. O violeta é inspiração. O azul…
E se você escolhe uma cor, isso quer dizer que todas os outros desejos para o próximo ano ficam em segundo plano?
– Como assim?
Se você escolhe a paz, a felicidade fica em segundo plano? Você abriria mão da sua felicidade ou da sua riqueza se isso possibilitasse a oportunidade de garantir a paz?
– Não é assim que funciona!!
E como é?
– Você veste uma cor que vai apenas simbolizar algo que você quer. Não é uma regra…
E não se pode simbolizar de outra forma?
– Você pode mentalizar alguma coisa também.
E como se mentaliza a paz? O que significa paz?
– Paz é uma situação em que não há estresse, nem violência, nem medo, nem guerras, nem massacres. Todo mundo viveria em paz.
E você teria disposição de abrir mão de qualquer outra coisa para que a paz possa existir?
– Como eu te disse, é apenas simbólico.
Se é apenas simbólico, pra que desejar algo?
– Porque funciona como um rito de passagem, é tradição. Ano novo, vida nova.
Mas se não fazemos ativamente algo para que nossos desejos possam se realizar, de que adianta tudo isso? É só mais uma desculpa pra gastar dinheiro com roupas novas e ficar com a consciência limpa durante a virada.
– Que chatice hein?
Coitado de quem é daltônico, que vai errar o que quer simbolizar enquanto desejo pro próximo ano. Mais fácil vestir preto ou branco, todas as cores ou ausência de cores.
– Affe…

La Idea, 2024 – Olympus Pen-EE, Kodakcolor 200

Último post nesse blog em 2025. Um ano que profissionalmente foi uma merda. Muito aquém de tudo, vários prejuízos em feiras (que eram meu lugar seguro de vendas), lojas de silks deixando de vender as coisas que eu preciso pra trabalhar, vários trabalhos cancelados, dificuldades com agenda, hérnia de disco… Enfim, uma série de coisas que não foram tão legais. Não consegui ler muito, não consegui me engajar na academia, perdi muitos prazos e não dei conta de realizar muitos projetos. Termino o ano num baixo astral enorme, sem cabeça para lidar com várias questões, dívidas de empréstimos, calor, capitalismo, enfim, coisas demais.
Com a mudança de ano surgem os planos, de fazer novas coisas, de fazer diferente, e de tentar depender menos de vender a produção. Tirando as feiras em que já marquei fazer, pode ser que em 2026 eu não circule tanto como em 2025. Acho que preciso colocar os pés no chão e repensar um pouco meus trajetos.
O primeiro é ter mais tempo pra minha pesquisa. Desde que terminei o mestrado eu não consegui fazer mais nada em relação à isso. Acho que em 2026 preciso me organizar melhor, voltar a ter ritmo de leitura, de fichamentos, de reflexões, pra construir um projeto e tentar ingressar em um programa de doutorado.
O segundo é voltar a publicizar as aulas de linoleogravura. Tive alguns alunos em 2025, e acho que foram experiências bem legais. Inclusive, tentar gravar mais vídeos pro youtube, igual fiz no início de pandemia. Acho que eram atividades interessantes e que circularam bastante nas redes.
Em terceiro lugar, eu realmente preciso cuidar da minha vida social. Entre neuroses, inseguranças, baixa-auto estima e um certo desinteresse em fazer algo, preciso sair mais de casa e do meu atelier. Tenho ficado muito tempo aqui, e isso pesou muito nesse fim de ano.
Em quarto, tentar escrever mais e, por consequência, criar publicações com isso. Eu que comecei a escrever porque minha cabeça não andava boa lá em 2017, 2018, acabei gostando demais desta atividade. Esse ano eu acho que postei pouco, escrevi pouco, mas vou tentar ser mais ativo em 2026, materializar essas coisas que estão somente no blog.
Enfim, a hérnia de disco me deixou até repensando se trampar tanto com serigrafia seria uma boa. Isso pesou bastante nos últimos dois meses, vários serviços atrasando, acumulando, enfim, complicado manter a rotina. Então pode ser que isso não seja algo tão frequente em 2026.
Mas é isso, gostaria de agradecer todo mundo que esteve junto em 2025, e que em 2026 possamos nos aproximar mais ainda.
Se quiser deixar uma mensagem aí nos comentários, sinta-se a vontade preu saber que você leu isso, e que você está comigo nessa jornada chamada vida.
Um grande beijo e um grande abraço.
Até 2026.

Lapsos de Tempo #20

Volta

A primeira é suave, você concentra seus esforços em movimentar as pernas da maneira correta. Direita, esquerda, direita, esquerda… A cada perna uma força maior. Você respira fundo, faz cara feia, o ar entra forte, sai pesado.
A segunda ainda é tranquila, já venceu a inércia e agora só precisa aumentar a rotação. Os pés presos permitem que o movimento seja contínuo. A perna esquerda ajuda a direita, e vice-versa. Você ajusta o corpo e respira fundo.
A terceira começa a pesar. A relação fica mais pesada, aparecem as dores nas panturrilhas e nas coxas, a velocidade precisa aumentar de maneira exponencial.
A quarta é controle de respiração puro. Você puxa bastante ar enquanto tenta ignorar as dores das pernas. A velocidade já está alta, agora você só precisa controlar o equilíbrio com cada vez mais rapidez. Você corta o vento e o vento te corta igual. A cada minuto essa barreira fica para trás.
A quinta é adrenalina. Você já tem velocidade o suficiente para fazer curva em um paredão a 45°. A lateral de seu corpo fica quase paralelo ao chão, mas a força centrípeta te mantém no trajeto, sem perder a velocidade.
A sexta você já alcançou 60 km/h. Suas pernas estão latejando, seus olhos lacrimejando por conta da resistência do ar, você já está muito ofegante, mas não consegue parar.
A sétima você alcança 65km/h, está tão rápido que qualquer momento com perda de foco significa um acidente. Você enxerga o trajeto e se concentra, mantém a atenção.
A oitava você não sabe mais qual velocidade está. Na sua visão periférica vários riscos e manchas que sugerem que há algo ali, tudo passa rápido. Você mira apenas na pista, enquanto sente seu quadríceps explodir simbolicamente em dores absurdas.
A nona, você entende que não consegue mais respirar, suas pernas doloridas começam a falhar, é impossível imprimir mais força na rotação. Seus batimentos estão no ápice, fortes e rápidos.
A décima, na hora da curva, você sobe o paredão de 45° e a velocidade reduz instantaneamente. Você sobe, olha pra pista, respira rápido tentando retomar uma certa normalidade, as pernas não respondem tão bem por algum tempo. Foram 2 km intensos.
As próximas voltas serão suaves, tranquilas.
Em breve tudo se repete.

La Idea, 2024 – Olympus Pen-EE Kodakcolor 200

Lapsos de Tempo #19

Amor

Você me ama?
Acho que sim.
Você acha que me ama?
Hmmm, acho… Bom, primeiro, talvez, preciso que você defina o que você entenda que seja amar. Para saber se eu te amo nos termos que você entende como amar.
Amar é… é um sentimento muito forte que você tem por outra pessoa, a ponto de querer fazê-la feliz e estar sempre próximo.
Hmmm…
Sabe? Querer viver a vida com essa pessoa em toda sua plenitude, ser feliz juntos.
Bom, tenho minhas dúvidas se penso como você. Acho que amar, na minha concepção, trafega em outras vias.
Como assim? Você ama diferente?
Não que eu ame diferente. Mas acho que amor vai além de querer fazer alguém feliz, ou querer passar a vida com ela.
O que é amar para você?
Acho que para mim o amor é um sentimento muito forte, como você disse, mas extrapola a questão da felicidade ou da companhia.
Como assim?
Acho que se uma pessoa ama outra, ela não precisa fazê-la feliz ou querer toda a plenitude da convivência e do afeto, mas também estar plenamente satisfeito com a felicidade da outra.
E como isso se diferencia?
Acho que se você está feliz, independente do motivo, isso me traz um sentimento alegre, pois eu te amo a ponto de desejar que você seja feliz. E felicidade pode vir de qualquer forma. Podem ser relações sociais, profissionais, viagens, habilidades novas adquiridas, preocupações, cuidados, um momento em que você se sentiu bem, um abraço em qualquer momento e por qualquer motivo, uma pintura bem feita, um livro lido que foi tão bom a ponto de te fazer olhar para o céu por um instante imaginando os personagens na vida real. Se essas coisas te fazem feliz, isso me deixa feliz. E isso me satisfaz enquanto prática do amor.
Mas se você define assim o amor, porque uma pessoa decide se relacionar com alguém por um longo tempo, namorar, morar junto, essas coisas? Isso não é amor?
Acho que sim. Todas estas práticas talvez façam sentido se existe um sentimento mútuo que surge quando compartilhamos as nossas vidas. Acho que o amor permeia esses rios. Em vidas compartilhadas ambas pessoas deveriam desejar a felicidade da outra, e das outras em um contexto mais amplo. Acho que uma forma de pensar e agir não deve se sobrepor à do outro, muito menos largada nas mãos do outro como se lidar com as questões individuais fosse um dever do outro, sabe?
Como assim?
Ahhh, tipo se pensar em ciúmes, por exemplo. Ciúmes é um sentimento que todas as pessoas sentem, sem exceção. Eu sinto, você sente, e todas as pessoas ao nosso redor sentem. E esse sentimento chega em maior ou menor grau. A questão que eu penso é que meus ciúmes devem ser lidados por mim, e não por você. O ciúme nunca deixará de existir, ele pode incomodar bastante e fico pensando em como lidar com isso… Eu posso tentar encontrar o que me causa ciúmes, posso verbalizar isso para você. Mas quem precisa encará-lo de frente sou eu.
Mas se isso fosse uma regra as pessoas não se relacionariam. Os ciúmes existem porque o outro nos causa algo.
Mas esse algo tem a ver com o quê? Insegurança?
Pode ser que sim…
Mas a insegurança é sua. Se a nossa relação, nosso convívio, nossa história, e todos os sentimentos que lidamos mutuamente não são suficientes para que você lide com essa insegurança, eu preciso abandonar minha felicidade por você? Você não se sente feliz ao me ver feliz? Você não é feliz?
Sim, mas, pode ser por medo também.
Medo de que?
Da perda, por exemplo.
Perder a relação? Perder algo que é ou era muito bom? Acho que nos resta entender que as relações vêm e vão. A cada momento faz sentido estar mais próximo de alguém, isso não é algo fixo. Pode ser por um tempo curto, podem ser por várias décadas. Cada pessoa tem seu tempo. As pessoas que eu me interessava na adolescência não são as mesmas pelas quais eu me interesso hoje. O fluxo da vida exige esse tipo de trânsito. A metáfora que eu uso é a da estrada ou das ruas. A gente as segue, vamos fazendo nosso caminho. E outras estradas e ruas vão cortando esse nosso trajeto, encontrando, desencontrando, indo junto, separando… Acontece. A perda também faz parte da ação amar. Entender e deixar ir…
Mas eu quero ser o motivo da sua felicidade. Eu quero te fazer feliz! Isso é amor.
Você quer ser um dos motivos da minha felicidade, mas é impossível você ser o único motivo, a única razão. Se eu reduzir amar ao que sinto por você, ou ao sentimento que você causa em mim, você está me dizendo que eu deveria ser triste em todos os outros aspectos da minha vida. Isso é muito injusto comigo. Isso não é amor.
Não é ser a única razão, mas ser a mais forte.
Eu não consigo entender as razões enquanto uma competição de importância na felicidade de alguém…
Hmmm… Mas então, você me ama?

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fomapan 100 PB

Lapsos de tempo #18

Fatalidade

Domingo foi dia de ir na feira, ver as amizades, comprar quitutes e almoçar ao som de pagodes clássicos. Todos os anos eu aguardo ansiosamente a chegada deste dia. Meu roteiro é sempre o mesmo: o mesmo ponto de encontro com as pessoas que sempre me encontram ali uma vez ao ano; comprar caixas de chá mate a granel que vem da agricultura familiar do sul do país; e assistir aos músicos tocando pagode enquanto me delicio com um feijão tropeiro vegano feito por produtores locais. Costuma ser um dia ótimo.
Vem meu amor, não faz assim, você é tudo aquilo que sonhei para mim…
O dia começou com uma cara de chuva, algo que estava fora do meu roteiro. Não que a chuva me impeça de fazer algo, mas quando você tem um evento em espaço aberto planejado, pensar duas vezes antes de sair de casa se torna algo comum. Nuvens carregadas, ventos frescos, clima abafado. Apesar disto tudo, penso que o dia me espera de braços abertos.
Com esse seu jeito faz o que quer de mim, domina o meu coração…
Eu, que sou um grande fã da iguaria indígena denominada cientificamente de Ilex paraguariensis, possivelmente de origem 100% Guarani, aguardo todo ano por este vendedor que vem do sul do país. Ele produz uma leva que possui uma tostagem mais controlada que esses industrializados que se vende em supermercados. O sabor fica mais forte, abraça o corpo por dentro, envolve o paladar de uma maneira que nenhuma outra bebida faz.
Olha nós outra vez no ar, o show tem que continuar…
O tropeiro também é algo especial. Ele é feito com feijão de coloração roxa colhido em terras de agricultura familiar. É misturado com coco torrado, soja graúda não-transgênica frita no molho shoyu, couve com alho na manteiga de castanhas, linguiça de lentilhas artesanal cortadas em rodelas e servidos com arroz branco em um prato de plástico. O molho de pimenta, caseiro, é opcional.
É uma saudade imensa que partiu meu coração…
Penso nisto tudo enquanto caminho em direção ao local da feira. O clima está ruim, fechado, mas eu acho que vale a pena a ida. Encontro com meus amigos e fico batendo papo durante um tempo. Sim, sempre encontro os mesmos amigos. É como se fosse um local onde todos saberemos quem estará presente. Após uns 40 minutos de conversas, começo a buscar nas barraquinhas pelo produtor do chá-mate. Depois de percorrer as 78 barraquinhas, descubro que desta vez ele não foi. O primeiro golpe atingiu meu coração em cheio. Minha compra anual de erva mate tostada pro meu chá diário foi cancelada, e com isso a primeira tristeza do dia.
Quando eu te vi pela primeira vez, me encantei com seu jeitinho de ser…
Passada a primeira frustração, sigo adiante para encarar a imensa fila do feijão tropeiro. Após alguns minutos em uma fila segurando o cardápio, descobri que estava na fila errada. Tive que entrar em uma fila específica do caixa, que demorou bastante até chegar minha vez. Na fila você só fica em pé, aguardando com ansiedade quando será a sua vez de pagar pelo serviço. Quando chegou a minha vez, tentei disfarçar meu descontentamento com o valor da iguaria. R$45 pelo prato de tropeiro. Paguei pensando que eu faria um rango melhor com essa grana em casa, mas achei que valeria a pena me desfrutar por uma última vez deste tropeiro tão fabuloso em minha memória.
Tira a calça jeans, bota o fio dental, morena você é tão sensual…
Com minha ficha em mãos fui na barraquinha onde serviam o feijão tropeiro. Era uma barraquinha bem desorganizada, não haviam filas, mas sim um aglomerado de pessoas gritando e tentando fazer o pedido antes das outras. Um verdadeiro caos. Eu esperei pacientemente até que alguém me atendesse sem eu precisar disputar atenção com pessoas muito mais engajadas na missão do que eu. Um senhora me atendeu com bastante calma e começou a preparar meu prato após pegar minha ficha. Ela serviu a refeição no prato, me deu juntamente com um garfinho de plástico e disse que o molho de pimenta era a parte, que eu poderia me servir a vontade. Assim o fiz.
Eu te quero só pra mim, como as ondas são do mar…
Enquanto voltava para o local onde estavam minhas companhias, observei que o tropeiro não estava tão rechonchudo como o do ano passado. Não tinha coco, e a linguiça não parecia ser a de lentilha que eu tanto gostava. Além disso, a porção de tropeiro era visivelmente menor que a de arroz, me fazendo refletir se realmente valiam os R$45. Enquanto caminhava me desviando das pessoas, dei um passo para o lado e me detive em um lugar seguro cedendo passagem para uma pessoa cadeirante que também tentava atravessar o mar de pessoas, só que para o outro lado. Para o meu azar, me detive atrás de um grupo de pessoas que não haviam percebido a situação, e uma delas deu um passo para trás abrindo os braços para simular alguma situação que conversava com seus amigos. Seu braço foi ao encontro do meu prato, enquanto eu me contorcia todo pra tentar equilibrar minha tão sonhada refeição.
Você só colheu o que você plantou…
Não teve jeito, meu pratinho virou e 89% da porção de tropeiro caiu, indo direto para o chão. Quando olho para o que sobrou praticamente só vejo arroz, pensando que no prato tinha tanto arroz que nem ia fazer falta se eu perdesse um pouco dele ao invés do tropeiro. Não dei conta, um xingamento saiu de minha boca, todo mundo ouviu. Fico olhando para a pessoa que começou toda a confusão, e ela me xinga dizendo que eu estava parado atrás dela. Isso me revolta bastante.
Eu te vejo nos meus sonhos, e isso aumenta mais a minha dor…
Acabei almoçando um arroz de R$45, sem meu mate tostado, ouvindo pagode ao vivo enquanto caía uma garoa disfarçando minhas lágrimas.

La Idea, 2023 – Canon BF800, Double-X 200 PB

Lapsos de Tempo #17

Tempo

A vida nada mais é do que um tempo que passa. Mas acho que é importante a gente perceber e passar o tempo junto com ele. Talvez a vida assim tenha um sentido.
– E se eu me sentar aqui, consigo ver o tempo passar?
Passam carros, pedestres, animais. A luz muda, as sombras caminham. Eu consigo perceber o vento apenas por conta do balançar das folhas, dos galhos, da sujeira da rua.
Olho para o relógio, mudam os ponteiros que apontam para números que marcam que horas são. O tempo passa rápido quando deveria passar devagar. E vice-versa.
Acho que tento perceber algo para provar se ainda estou vivo, ou se apenas vejo a vida passar enquanto perco tempo. Eu digo que estou preocupado.
– Isso me preocupa!
Mas ninguém me escuta. Não há pessoas tentando perceber o tempo passando.
Imagino que essas pessoas apenas vivem sem se importar com isso.
Talvez, em algum momento, elas se olham no espelho e veem rugas na pele, cabelos brancos. Talvez sintam que estão sem fôlego, que o corpo demora mais tempo para se recuperar de uma enfermidade, que o álcool ingerido embriaga muito mais rápido. Sem falar na dor de cabeça do dia seguinte.
– Maldita dor de cabeça!
Se pensarmos no tempo que passa, pode ser que estejamos perdendo esse tempo.
Talvez tudo isso seja perda de tempo. Pensar, perceber, indagar.
É vida que passa. Será que isso pode mesmo levar à loucura?
– Dar sentido a vida pode levar à loucura, mas uma vida sem sentido é uma tortura da inquietação e do vão desejo. É um barco que anela o mar, mas o teme…
De onde estou não vejo o barco, apenas temo o mar.

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fuji 200

Ow!

Com licença Senhor, alô alô. Me desculpe te interromper, mas sua carteira caiu!
Senhor, sua carteira caiu no quarteirão de trás, vim avisar-lhe!
Diaxo, sai fora daqui!!
Ow, Senhor, não queria te incomodar, mas preciso te avisar da sua carteira, ela está no chão!
Cala a boca!!!
Eu queria pegar e trazer, mas ela tava muito cheia e pesada, eu não dei conta, ia acabar fazendo bagunça. Eu imagino que o conteúdo dela deve ser importante para o Senhor, por vim correndo te avisar!
Maldito seja!!!
Senhor, com licença, não queria atrapalhar seu percurso, mas considero de extrema importância que o Senhor volte e pegue sua carteira que caiu no chão. Aqui é rua, qualquer um pode roubar.
Calado!! Me deixe em paz!!
Senhor, eu sou muito paciente, posso ficar repetindo várias vezes aqui, mas não dá para o Senhor me ignorar assim, eu vim correndo, na maior boa vontade.
Vai embora!!! Vou te chutar daqui!!
Ow, não fiz nada demais, vai me chutar porque?? Eu hein? Não posso nem mais ser gentil.

La Idea, 2024 – Olympus Pen-EE, Kodakcolor 200

Lapsos de Tempo #16

Marquinho

Pulo da janela para o telhado. Sigo adiante sem vacilar os passos. Subo em uma clarabóia, vejo um cachorro dormindo no chão ao lado da cama, seus donos não se importam muito com ele ali. Ele fareja algo, eu olho, sorrio, e sigo meu caminho. Não me importo muito com o que acontece ali. Piso de telha em telha sem fazer barulho. Meus passos são leves e firmes. Consigo saltar sem fazer ruído em um parapeito estreito. Caminho com cuidado. Apesar de experiente, qualquer coisa pode acontecer. Impulsiono meu corpo por uma haste metálica de sustentação, me agarro ao fio e consigo chegar no próximo edifício. Subo pelo relevo que os tijolos deixam na superfície, quase quatro andares até algum lugar seguro. Passo por uma entradinha próxima de uma janela cheia de vasos de plantas. Consigo passar sem derrubar. Entro em uma residência grande, raspo um pouco minhas unhas no sofá Ônyx, ele me pareceu ter uma textura interessante, mas só era feio e sem graça mesmo. Atravesso toda a casa até a varanda, ela sempre está aberta para entrar uma ventilação natural, uma brisa vinda do mar que toda noite dá as caras. Da grade da varanda eu salto para a palmeira que está no pátio. Da palmeira, me agarro em um cipó e me encontro com Marquinho, um sagui que me acompanha nos furtos durante a noite. Marquinho me disse que conheceu um novo lugar, maravilhoso. Marquinho diz que hoje é uma noite especial. Subimos pela mata, pulando de galho em galho, às vezes um telhado surgia, mas nada que impeça nosso trajeto. Somos ágeis.
No topo de uma castanheira milenar, vemos a lua cheia e nos deliciamos com o mais belo visual daquela mandala luminosa que se agigantava em nossa frente. Estou feliz por ter vivido o suficiente para ver isto. Adormeço.
Sonho com várias viagens e lugares, outros seres que habitam este espaço. Meu sonambulismo me deixa fabulado com todas as coisas que conheço nessa passagem. Estou com muita preguiça de levantar, por aqui ficarei.
Foda-se o mundo.

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fuji 200

Pensei

Hoje é o dia mais chuvoso do ano e eu irei retratar isto.
Pensei em fotografar enchentes, mas não é o dia com maior volume de chuvas do ano.
Pensei em registrar cada gota que escorre nas superfícies urbanas, mas me pareceu utópico demais.
Pensei no espelho d’água gerado pela poça, que reflete perfeitamente a sede luxuosa do governo enquanto pessoas pisam em cima deformando a imagem, mas me pareceu uma crueldade clichê demais.
Pensei no jorro de água que os automóveis lançam contra os pedestres, mas me deu ódio só de pensar na cena.
Pensei na serenidade que são as gotas caindo no piso e deixando marcas que rapidamente somem, mas tenho certeza de que uma fotografia apenas não bastaria para isso.
Pensei em registrar o quão carregadas estavam as nuvens, mas a captação da lente não dava conta de chegar até lá.
Pensei em enquadrar a cena de um grupo de pessoas se espremendo em um abrigo na parada de ônibus, esperando um transporte que parece demorar mais a cada dia, mas percebi que ninguém mais usa ônibus em dias de chuva.
Pensei em captar o momento em que um jovem sacode um galho de uma árvore, o que faz com que seu irmão receba todas as gotas que caíram com o menear dos outros galhos, mas não fui rápido o suficiente.
Pensei naquela gota que escorre de cada folha, nos motociclistas uniformizados com trajes que protegem da chuva, com vendedores de sombrinhas nas esquinas, com aquela criança que olha pro céu e tenta desviar-se das gotas que caem, ou mesmo com aquelas pessoas que ainda não sabem se correr molha mais, menos ou igual que caminhar na chuva.
Pensei em cantar Colligere, que cita Fernando Pessoa, quando o vento cresce parece que chove mais.
Mas vi alguém tentando registrar o mesmo que eu, com mais certezas que dúvidas.

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE Fuji 200

Lapsos de Tempo #15

Passeio

Vejo o que ele tem na mão, me animo. Me vem uma felicidade extrema que não consigo me conter. Vou até ele e sinalizo que concordo com sua atitude. Ele coloca algo no meu pescoço enquanto olho para o Breno ao meu lado querendo que seja feito o mesmo com ele. Nós, afobados, saímos correndo até a porta de vidro. Ele abre e, por mais que façamos força, não conseguimos correr livremente. Vamos tentando caminhar, mas Breno não consegue andar em linha reta e toda hora me fecha. Breno também faz com que nossas guias se enrosquem, e isso dificulta o andar. De vez em quando eu perco a paciência com Breno, mesmo ele sendo muito maior que eu. Eu cheiro alguns lugares, ele vem atrás de mim fazendo o mesmo. Fico me perguntando se ele tem a própria personalidade e interesses. Deixo um pouco de urina por onde passo. Gosto de marcar alguns lugares e deixar registrada a minha presença ali. Breno me imita em tudo. A cidade é viva, e nós que fazemos ela viver.
Vejo algumas coisas no trajeto, cheiro e não me agrada muito. Já Breno morde tudo antes de saber o que é. Ele morde, baba e cospe fora, não possui muitos critérios. Seguimos pela avenida vendo todo o movimento de automóveis barulhentos, ao mesmo tempo que acompanho o voar silencioso de uma borboleta. Isso me detém um pouco no processo de contemplação. Breno não enxerga nada disso. Passa por cima de qualquer coisa que está no seu caminho.
Na esquina um cheiro chama a minha atenção. Percebo que Breno sentiu a mesma coisa. Nos entreolhamos e fomos correndo, forçando o chão para chegar lá o mais rápido possível. Era um gramado a meia altura, recém cortado, cheirinho de mato molhado, algumas flores solitárias enfeitavam. Eu olhei para Breno, ele me olhou. Fomos até lá, subimos, cheiramos o melhor ponto possível, demos duas voltas em torno de nós mesmos e soltamos o som mais gostoso do mundo: “-ahhhhwwwwff!”.
Sim, o único em que concordamos é que cagar na grama é o melhor momento do dia.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023


Horizonte

Quando estou caminhando, correndo, pedalando, me locomovendo de uma maneira geral, olho para o horizonte. Acho interessante como que as coisas no primeiro plano passam de maneira muito mais rápida que o fundo da cena.
Fico pensando no que são nossos sonhos, desejos, o que queremos e o quanto nos propomos a buscar o que almejamos.
Fiquei pensando nessa analogia com os planos da paisagem. O que está muito próximo, chega rápido, mas é isso, não tem nada demais além do que está na na cara. Logo é substituído por algo tão efêmero quanto.
O que está a médio prazo, passa a uma velocidade menor, podemos ver com calma, analisar, escolher, temos tempo para observar. O primeiro plano, veloz, às vezes atrapalha um pouco observar o que está a média distância, mas não impede.
Já o que está no fundo, no horizonte, passa tão devagar que nem parece que estamos nos movendo. Ali temos um amplo leque de possibilidades até conseguir chegar lá. E pode ser que nem seja lá onde queremos chegar. Tudo depende do caminho. Mas é um ponto de fuga, algo onde miramos.
Talvez seja por isso que a utopia seja tão metaforizada como a ideia do horizonte.
Ele está longe, mas está ali. Só saber ir com calma.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023

Lapsos de Tempo #14

Topo

Outro dia li em algum lugar que a pessoa sem ter para onde ir só a restou chegar ao topo. Eu fiquei pensando o que é este topo que as pessoas tanto buscam.
O que me chamou atenção foi esse lugar imaginário, o alto, o cume, o ápice, a ponta, mas sempre pensando em um grau elevado. O que significa alcançar essa quimera?
Primeiramente, óbvio, busquei ajuda no dicionário: TOPO pode significar esse ponto mais alto, mas também significa “extremo”. Essa segunda definição talvez passe despercebida e oculta na maioria dos casos.
Eu entendo quando “topo” é usado como esse lugar que desejamos. O lugar da figura do sábio, alguém que está em uma posição elevada, e nós como seres humanos buscamos também ter o papel de certa referência. O pico da montanha, o topo da pirâmide, o céu.
Lugar onde reside um conhecimento e uma energia sublime, logo quem está lá se torna alguém superior.
Mas também é uma posição inventada: reis, políticos, religiosos, imperadores, empresários, charlatães de um modo geral… Todos clamam ocuparem estes locais. Desejam uma superioridade autoproclamada.
Mas acho que se pensarmos que também que topo pode ser um extremo, de forma genérica mesmo, as coisas tomam outra dimensão.
Chegar no extremo da dor, das emoções negativas, da [in]sanidade mental, da violência, da manipulação. No extremo até onde podemos suportar alguma coisa.
Parece demasiado trágico restar apenas o extremo, como se não pudéssemos mais ter escolhas.
Será que é o topo mesmo que estamos buscando?
Depois deste extremo é o fim? Depois do cume vem o declínio?
Nosso trajeto é feito de sobes e desces, de um lado para o outro, de vais e vens.
Prefiro acreditar na caminhada.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE – Shangai GP3, BW 100

Lapsos de Tempo #13

Nada é linear

Andar e caminhar sem destino.
Acionar o corpo para privilegiar o movimento nem sempre é fácil. Primeiramente, é sempre interessante encontrar uma boa razão para tal ação. Segundo, é importante pensar em alguns critérios. Terceiro, há de saber como desfrutar destes momentos.
Boas razões temos aos montes. O tédio causado pela vida contemporânea que praticamente nos obriga a interagir com uma tela todo o tempo, a falta de motivação para o lazer ou para o trabalho, um passeio externo para ajudar a arejar a cabeça e as ideias, a apatia da vida comum e monótona que nada traz de novidade, solidão.
Critérios, esses sim precisam ser tidos com mais cuidado. É importante pensar em um local com calçadas largas, quarteirões curtos, comércios, áreas verdes, vestimentas e calçados adequados. Sair sem rumo requer que, minimamente, passemos por paisagens agradáveis, sem grandes monotonias, mas também sem a agitação de um centro urbano densamente povoado. A busca pelo equilíbrio entre algo onde absolutamente nada chama atenção, e de onde existem tantos estímulos sonoros e visuais que chega a doer a cabeça. Lugares com muitos obstáculos tendem a ficar cansativos rápidos demais, com seus desvios e trombadas. É importante esse espaço equilibrado, de respiro e atenção ao infraordinário, às coisas que acontecem e que são de uma grandiosidade comum duvidável. Praças, parques, comércios, cafeterias, lugares comuns, pontos de interesse turístico, obras de arte, calçadas, arquiteturas urbanas que fluem o olhar e os trajetos, barraquinhas nas ruas, rios e canais limpos. Qualquer cena que agrade ao olhar e nos faça ter mais vontade de conhecer cada centímetro dos espaços.
O desfrute é algo que cada sujeito desenvolve por si próprio. Um sujeito enxerga a possibilidade de sair da estagnação quando pensa em se movimentar. Os olhos treinam para enxergar as pequenas coisas do trajeto, os rostos familiares, pixações, bancos, lojinhas, pessoas aleatórias, animais, prédios, praças, áreas verdes… Tudo que pode existir no caminho faz parte do movimento. Há alguns que curtem fotografar algumas coisas que lhe chamam atenção, outros se detém por um momento para desenhar ou versar sobre como se sentem. Outros apenas guardam tudo isso na memória, como algo que foi vivido e que fez parte deste momento do corpo em ação, em uma das habilidades mais básicas do ser humano: caminhar.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 PB

Desimportância

Não importa a passagem dos cursos de água, nem das correntes de vento.
Não importa o percurso de quem caminha ou se locomove na urbe ou na imaginação.
Tampouco importa se haverá onde descansar o corpo, as vistas ou a mente.
Tudo é atropelado e sobreposto em camadas e camadas de informação inútil, que se apodera de todos os campos e não nos fornece muitas alternativas.
Subverter não é ir contra o estabelecido, mas criar caminhos outros apresentando a não-linearidade das formas, sejam físicas ou ideológicas.
Subverter é sair da total desimportância de tudo, que mantém a inação dos sujeitos, para dar importância a tudo que construímos e para um local onde somos alguém, onde somos alguém que desejamos ser. Livres e fortes.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Lapsos de Tempo #12

Calma

Não sei se isso te toca tanto quanto toca a mim. Sinto uma pressão interna, ela é quente e sufocante. Me faz suar e ter vertigem, mesmo estando com os pés no chão. Já tentei respirar fundo, fechar os olhos e me deter por um período de tempo para ver se passa, mas nada adiantou. Começou quando a passagem de ar foi bloqueada, por vidro, por concreto e por metal. Toda essa matéria erguida cospe em mim a radiação, tirando minhas forças. Eu transpiro sem ar, enquanto o calor afugenta minha vontade de seguir. Sinto que este lugar não me quer, torna cinza tudo o que toca. Meus olhos ardem enquanto tentam focar em algo, mas só sinto hostilidades.
Outro dia mesmo estive em um lugar onde sentia as correntes de ar, onde meu nariz não entupia e onde o calor não me sufocava. Onde me dava vontade de caminhar e descobrir onde tudo isso vai dar. Será que ainda é possível?
Fico pensando no termo que me lembro de haver descrito para tal sensação: Calma.
Calma foi como descrevi um estágio onde, por um curto período de tempo, o caos e a entropia se detiveram. E a vontade de seguir sentindo isso foi grande.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 PB

Trabalho

– Olá, olá, sejam muito bem vindos! Por favor, podem entrar, sintam-se a vontade. Não se acanhem, a porta está sempre aberta para melhor recebê-los. Venham, venham ver as novidades quentíssimas no interior de nossa loja. Tem produtos eróticos para a Senhora, tem chicotes sustentáveis para o Senhor, tem filtro solar para o bebê, tem tapetinho de LSD pro pet! É isso mesmo que você ouviu, tem produtos para toda a família! Ei, você aí, você mesma, não perca a grande oportunidade de ver ao vivo o sugador anal sendo utilizado em 15 funções distintas. Apenas hoje, promoções no cinto de castidade que você encontra no corredor F2, logo à direita; também descontos imperdíveis em telefone celulares de última tecnologia, com reconhecimento de emoções básicas na palma de sua mão. Logo adiante, após os caixas, roupas de algodão importado da Antártida, feito com as menores mãos para garantir o não-encolhimento, disponíveis em várias cores e tamanhos. Vamos entrar na loja, só assim você poderá verificar com seus próprios olhos o fenômeno do Natal: o cruzamento da ovelha com a rena, pilhas inclusas. Não percam esta oportunidade única de abastecer sua despensa com vaselina, pimenta do reino, creme de alho e água mineral. Passem, passem! Você de camisa amarela que está sorrindo para mim, não subestime meu trabalho e vá logo garantir os melhores quadrinhos pornográficos do sudeste iraquiano, disponíveis em apenas 3 idiomas. Compre 2 quadrinhos e leve de brinde um chaveiro com abridor de garrafas. Apenas hoje. Eu disse “Apenas Hoje!”. Amanhã não posso garantir os preços incríveis de hoje. Desodorante vaginal, cobertores, lâmpadas, barbeadores elétricos no precinho. Não percam. Entrem, entrem, entrem, por favor, entrem!

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 PB

Lapsos de Tempo #11

Anti-horário

O pogo sempre gira para um determinado lado. Pogo é o equivalente ao mosh, ao bate-cabeça, à muvuca que ocorre nas gigs punks ao iniciar uma música. Funciona de uma maneira simples: o som começa e você inicia a girar em torno do centro do público enquanto faz movimentos [des]coordenados entre pés, mãos, cabeça e tronco. Cada qual a sua maneira, os movimentos diferem entre as pessoas participantes, mas aqui ocorrem algumas situações que são comuns à todxs.
Estas situações dizem respeitos à regras não escritas, mas que são internalizadas pelxs dançarinxs: 1) se alguém cair no chão, proteja a pessoa e a ajude a levantar; 2) o ritmo da música sempre ditará a velocidade da roda que gira; e o mais importante: 3) o giro é sempre anti-horário.
Não adianta tentar mudar o sentido do giro, não funciona. Mudar o giro é algo que é tentado desde os anos 80, sempre sem sucesso.
Nos anos 2010 ocorreu a Primeira Reunião de Pogadores Amadores do litoral sul da Praia de Menezes. Nesta reunião as pessoas debateram a mudança do que ficou conhecido como Paradigma do Sentido. A proposta não é mudar a direção do pogo (circular sempre), mas de discutir a possibilidade da alteração do sentido (horário/anti-horário). O grupo a favor da mudança argumenta que o tradicionalismo deveria sofrer um rompimento, pois o ideal punk sugere sempre uma afronta à ordem estabelecida. E isso, por si só, já deveria ser uma razão sem contestação.
O outro grupo, ao contrário, argumentou que o punk é anti-sistema o tempo todo, e que ir contra o padrão estabelecido pelo giro do relógio é o ponto de partida para se pensar o sentido do giro. A questão, a meu ver, é que ambos grupos estavam discutindo qual deveria ser o maior rompimento com o sistema. Romper com o padrão ou romper com o rompimento do padrão?
Nunca houve um consenso sobre isso. A Reunião acabou com Punkadaria, banda atuante na época, e o pogo foi sentido anti-horário, sem confusões, conflitos ou incidentes.
Nunca houve outra Reunião. O Paradigma do Sentido ficou completamente esvaziado.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Vícios

Durante muito tempo eu fui um viciado. Existia algo que me prendia forte, não me deixava escapar, me segurava com todas as forças. Eu não dormia, nem comia, não tinha interações que não fossem para sanar meu desejo mais profundo e incontrolável.
Tudo começou com vídeos de toboáguas. Eu seguia vários canais do YouTube de pessoas que filmavam suas descidas. Eram descidas longas, sinuosas, molhadas, com vistas deslumbrantes. O protagonista da descida apoiava a câmera na cabeça ou no peito. Possuía shorts com sua marca e apoio para os pés para que não escorregasse ao subir as escadas que davam acesso ao início da queda.
Logo, eu passei a assistir os milhares de vídeos sobre o Tsunami que ocorreu em 2011, na cidade de Fukushima, Japão. Eram vídeos impressionantes de desastres, caos, vidas e histórias sendo levadas pela correnteza. São imagens incríveis e impressionantes, registradas com a melhor tecnologia da época. Destruição que me deixava vidrado por horas.
Um tempo depois, parti para a visão da cabine do piloto de composições como metrôs, trens, bondes e VLT´s. Fora meses e meses assistindo belas paisagens rurais e urbanas, trilhos, neves, túneis, estações, acidentes e climas diferentes. Vi de tudo em tempo real, inclusive viagens longas interestaduais.
Daí eu passei para a fase Frisbee Golf. Era um esporte estranho, que misturava a chatice do golf com a diversão do frisbee. Pessoas muito habilidosas, sem porte de atleta, lançavam o frisbee em meio à arvores, arbustos e lagos, e que traçava caminhos sinuosos, longos, e acertavam em cheio algo que parece uma lixeira de correntinhas no meio do nada. Assisti a vários torneios sem entender muito bem como a pessoa sabia onde estava o alvo a ser acertado. Nunca fez sentido para mim.
A fase mais perigosa surgiu quando eu me viciei em vídeos de motoristas fazendo merdas com seus carros e causando batidas violentíssimas. Pessoas inconsequentes causando a destruição por motivos egoístas e fúteis. Carros que acessavam a contra mão em alta velocidade, acertavam outros dois, atravessavam o baú de caminhões e explodiam em algum muro dando sopa. Foi terrível.
Decidi ir por um caminho mais leve. Passei a assistir ciclistas urbanos em suas bicicletas fixas andando perigosamente pelas ruas de diferentes grandes cidades mundiais. Essas pessoas aterrorizavam pedestres distraídos, faziam ultrapassagens perigosas em corredores estreitos, freiavam com skidz que eu tenho minha dúvida sobre sua eficácia. Foram vários cenários urbanos que faziam parte desta insanidade adrenalinada.
Logo após esta fase, surgiu em minha vida o Calcio Storico Fiorentino, um jogo tradicionalíssimo em Florença, na Itália, que, pelo seu grau de brutalidade, só pode ser jogado uma única vez ao ano. Acompanhei os torneios de 2021, 2022 e 2023, em seguida, e me impressiona o quanto essas pessoas conseguem se manter de pé. Demorei algumas partidas até entender as regras do jogo, e depois de tanto tempo, ainda acho que talvez apenas compreendo o objetivo.
O vulcão ativo das Ilhas Canárias foi algo que me manteve desperto e paralisado o dia inteiro. Eu assistia aos canais de transmissão ao vivo. Vi a lava descendo calmamente e destruindo lares, cidades, vegetações, ecossistemas, não conseguia parar de assistir.
Depois, veio a onda Bo-taoshi. Um jogo japonês em que duas equipes brigam para derrubar o mastro uma da outra. Intenso, rápido, bruto. Assisti a várias partidas entre diferentes equipes. Nunca vi pessoas se mobilizarem tanto por uma partida tão curta. Você acaba começando a torcer por alguma equipe, ou torce pelas duas, afinal, o que vale é assistir a um belo espetáculo.
Por último, passei a assistir vídeos de uma empresa dos Estados Unidos que limpava tapetes e carpetes imundos. É prazeroso ver todo o processo, rodo, vassoura, limpadora elétrica, escova, jato de pressão. Um verdadeiro deleite para os olhos.
Hoje eu consegui sair deste vício.
No mais, passo meus dias junto com meus amigos assistindo patos interagindo entre si na lagoa do Parque. Você já percebeu que o bico dos patos parecem lobos?

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Lapsos de Tempo #10

Movimento

-Você diz estar cansado pra sair com a gente, mas vai embora a pé até a sua casa a essa hora da noite? Meio contraditório isso, não? Ou você está cansado, ou não está…!

-O cansaço não é algo que me impeça de caminhar. Desde jovem eu aprendi que minhas pernas poderiam me levar onde quisesse nesta cidade. Quando estava na quinta ou sexta série, passei a ir e voltar da escola caminhando, atravessando uns 4 ou 5 bairros. Comecei a fazer isso para economizar vale-transporte e poder gastar com alguma outra coisa. A cidade ficou pequena para mim, pois tomei gosto pelas calçadas, pelas ruas e por esta vida que surge e se movimenta em meio ao concreto cinza e rígido. Passei a observar cada elemento que surgia no meu trajeto. Pixações novas e antigas, portas, portões, janelas, lojas, graffitis, pequenos fragmentos de qualquer coisa que eu achava no chão. Tudo era motivo preu seguir me movimentando e observando. Quando eu estava no ensino médio arrumei um trabalho de office-boy. Minha tarefa consistia em colocar vários envelopes com boletos na minha mochila jeans cheia de patches punks e entregar para clientes da empresa em vários pontos da cidade. Eu criava uma rota analisando o mapa da cidade que vinha nas primeiras páginas do catálogo telefônico, decorava cada esquina que eu deveria virar, e para onde seguir depois de entregar algum envelope. De noite, eu ia para o colégio escutando walkman enquanto observava cada elemento que me chamava atenção no caminho. Não, eu nunca fui um bom estudante. Tive minha educação básica completamente negligenciada, mas caminhar sempre foi algo que me fazia aprender sobre o espaço em que eu me situava. Eu era um observador de tudo que acontecia no trajeto, de qualquer coisa que fugisse do padrão e atravessasse meu olhar. Você começa a perceber a rotina de cada pessoa que cruza o seu caminho, e acha estranho se em algum dia a pessoa não passou por ali, naquela hora. Você passa a enxergar as atividades das pessoas, você sabe em qual velocidade elas caminham, e começa a se perguntar para onde estão indo. Você sabe quando um outdoor foi trocado, quando a lixeira é esvaziada ou quando a rua será varrida. Você conhece os buracos e imperfeições, e comemora quando a passagem de pedestre foi consertada. Você olha o número das casas, percebe sua diversidade estética, e acha ruim quando a placa de número fica em algum escondido. Você presencia os locais de dormitório das pessoas em situação de rua, como arrumam aquele espaço público em um pequeno local aconchegante, e se questiona o que pode ter acontecido quando elas não mais estão ali… Minha vida sempre foi movimentada pelo ato de caminhar. Vieram outros trabalhos, cursinhos pré-vestibular, viagens, eventos punks em diferentes locais da cidade e da região metropolitana. Lá estava eu indo a pé, sozinho ou acompanhado. Caminhar não me traz cansaço como um trabalho repetitivo e exaustivo, ou uma roda de conversa no bar onde dez pessoas gritam para se fazerem ouvidas em meio à tanto estímulo sonoro, visual e alcoólico. Talvez algum dia você me compreenda. Caminhar, para mim, não é uma atividade física, não é algo que me desgasta, não é algo que eu faça apenas quando estou descansado, não é algo que eu faça para emagrecer, ser saudável ou manter a forma. Caminhar é um modo de locomoção ativa, que faz com que eu não dependa de recursos financeiros, aplicativos, tecnologias digitais. Caminhar é vivenciar outras formas de sentir a pulsão da cidade, de descobrir trajetos e curiosidades, de observar elementos que compõem o espaço, de refletir sobre o quanto a cidade odeia seus habitantes, de deixar que algo diferente te faça escapar da normalidade e da apatia. Caminhar, para mim, é descansar enquanto consigo organizar meus pensamentos durante o trajeto. Quando eu caminho, eu sinto que eu empurro o mundo para trás enquanto me lanço adiante em cada passada. É isso que me move. Talvez você nunca entenda…

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW


Boletim de Ocorrência

Fui roubado, furtado, expropriado, larapiado, escamoteado, surrupiado, usurpado e assaltado das piores formas possíveis. Levaram meus desejos, meus sonhos, minhas vontades, minha disposição, meu apetite, meus anseios, meus interesses, minhas aspirações, ambições, pretensões e intenções. Já não me resta nada além de desespero, frustração, rancor, mágoas, decepções, desencantos, desilusões, desgostos, tristezas, fracassos, derrotas e descontentamentos. Queria muito saber se vocês podem me ajudar, me auxiliar, me assistir, me socorrer, acolher, amparar e contribuir para resolver este meu grande, gigante, imenso, enorme, colossal, extenso, vasto, profundo e complexo problema, adversidade, dificuldade, sufoco, imbróglio, revés, transtornante contratempo trágico.
Como farei para retomar minha vida nesta imensidão louca e insana que é viver sem o mínimo possível? Eu quero de volta minha esperança.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW

Lapsos de Tempo #9

Corrente

Estou seguindo a corrente de ar, direciono os movimentos de corpo para que ela me mantenha no caminho certo. Primeiro, mantenho uma postura firme, mirando pra frente, sem ter um destino certo. Adoto uma forma mais aerodinâmica para subir a velocidade, cortando a resistência do vento. Os ombros estão encaixados para que as asas não fiquem livres, mas elas conseguem girar levemente para acompanhar o impacto invisível da corrente de ar. Assim eu não caio. Depois, sinto cada centímetro do meu corpo receber sua porção de vento que impulsiona e dá velocidade. Não falta destreza nesse pequeno corpo que sobrevoa as vossas cabeças.
Daqui de cima eu vejo tudo, observo tudo. Essas construções novas que surgem em qualquer lugar atrapalham o trajeto. Surgem novas todos os dias. Eles fazem com que os ventos mudem de direção, ou de sentido. Seguimos um pouco errantes neste trajeto sem rumo.
Aqui em cima a vida anda complicada. Existe uma certa competição por espaço entre esse tanto de coisa. São construções, aviões, helicópteros, torres, fios, papagaios e outras aves querendo se guiar pela corrente. Difícil fugir desta lógica quando os trajetos são planejados a curto prazo. Todo mundo aqui tem pressa, o que torna tudo mais complexo. Na corrente não há lugar para todo mundo, mas há outras correntes que guiam até outros lugares. Nunca entendi porque todos vão para os mesmos lugares sempre. A competição é por tempo também.
Sigo firme no meu caminho, desvio de fios com rolinhas, viro a direita para pegar a brisa vespertina que segue via oeste. Aqui é mais escuro, mas é um trajeto que refresca. Mudo para o patamar de cima, desvio de um poste de luz que piscava como filme de terror, a pressão aumenta, e minhas asas não aguentarão muito mais tempo. Volto para o patamar de baixo aproveitando o vácuo deixado por um companheiro, isso me faz descansar. Não sei para onde ele vai, mas preciso aproveitar o máximo possível a chance do descanso. Adiante me desvinculo do companheiro e sigo à direita, próximo de um coqueiro. Tem um tucano que vive ali em cima, hoje ele não estava. Lá embaixo, uma subida íngreme. Aqui, a corrente de ar me leva para cima sem muito esforço.
No horizonte, vejo que o sol começa a baixar. Eu acelero com um voo rasante na diagonal para baixo, pego impulso e subo o viaduto embalado. Subo alguns degraus de ar e alcanço o beiral da Mocadinha. Aqui é o melhor ponto para ver o sol se pôr.
Tem coisas que valem a pena o esforço.

La Idea, 2022 – Lomo Action Sampler, Fujifilm Superia 400

Referências

– Frederico, ultimamente tenho percebido que você está meio para baixo. O que aconteceu?
– Querida, há muitos anos atrás eu achei que minha ideia algum dia seria um sucesso. Mas até hoje eu só coleciono fracassos. Estou atolado em dívidas, o negócio já não é tão mais próspero, e nem o trocadilho com a animação faz mais sentido. Eu investi pesado em marketing, na apresentação de um bom produto. Contratei identidade visual e até adquiri parte dos direitos de imagem junto à empresa gringa. Contratei os melhores funcionários, pagando um salário mais que justo, pensando que o negócio iria prosperar, e hoje, nesta situação em que me encontro, não tenho mais perspectivas. Eu não consigo entender, de verdade, porque o mundo compreendeu que estamos mais próximos dos Jetsons do que dos Flinstones. Nós seguimos as mesmas etiquetas da idade da pedra, e não alcançamos o tráfego aéreo ainda. O mundo que se tecnologizou só o fez por partes. Seguimos tão antiquados e quadrados quanto os nossos antepassados. Apenas substituímos a rocha bruta por uma mistura de metais leves e resistentes, mas ainda assim deixando o rastro de destruição causado pela extração. O solo deixou de ser fértil porque não plantamos mais nada por pura preguiça. Preferimos comer embutidos e enlatados, que são re-fritos em óleos cancerígenos enquanto assistimos a qualquer besteira na televisão. O mundo instala esteiras rolantes nas calçadas das ruas, enquanto obriga alguém a pagar por uma academia para caminhar na esteira. É quase como ter um carro chique, importado, e usar os pés descalços para dar algum tipo de tração. A ilusão do moderno, do tecnológico, do futuro não passa de puros devaneios. A pedra, esse elemento revolucionário que deu origem aos mais diversos momentos da história, foi esquecida. Ela foi lançada contra tanques durante as Intifadas, serviu para erguer pirâmides e templos, suportou durante milênios vários tipos de inscrições e incisões, e reza a lenda que foi usada de suporte para carregar os dez mandamentos. Nada disso mais importa hoje…
– E o que você vai fazer agora?
– Bom, andei pensando e cheguei em algumas conclusões: Nada é para sempre; pedras resistem ao tempo mas não resistem ao humano; Flinstones e Jetsons são animações irrelevantes.
– E daí?
– E daí que me preocupa com qual animação iremos pensar sobre o passado e sobre futuro e em quanto tempo ela ficará obsoleta.
– (???)
– Não te preocupa essas questões?
– Não. O que me preocupa são todas as indenizações que você terá que pagar para seus funcionários, além das contas atrasadas e empréstimos. Você não sabe onde recorrer?
– Sim, vou assistir Galinha Pintadinha.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Lapsos de Tempo #8

Diário

Hoje acordei nesse lugar estranho. Parece uma caixa com uma porta. Tem outros como eu em outras caixas parecidas. Não vejo ninguém com a cara boa dentro destas caixas. Tem algo ligado na minha veia, parece que estão me injetando um líquido transparente. Sinto uma dor abdominal tremenda, parece que falta algo. Não tenho muitas lembranças de como cheguei aqui, ou o que aconteceu nesse tempo. Tem algo enfiado no meu pescoço que me impede ver o que fizeram comigo, mas sinto uma faixa apertando o abdômen. Acho que estou sem forças…
***
Vejo o casal que cuida de mim na sala de espera desse lugar horrível. Por mais que eu queira sair correndo em direção à eles, sinto muitas dores, acho que estou meio zonzo. Sinto uma fraqueza no corpo. Eles me pegam no colo e me colocam no carro. No trajeto, olho a paisagem, ainda muito desconfiado do que pode ter acontecido comigo.
***
Já fazem alguns dias que sigo a mesma rotina. Me obrigam a tomar vários remédios com hora marcada. Eles são ruins, amargos, e eu sempre recuso esse tipo de tratamento. Essas pessoas que cuidam de mim me colocam deitado de barriga para cima no sofá. Eles limpam o corte fechado com pontos que tem na minha barriga. É um corte grande, e eu sinto um nervoso ao sentir esse produto de limpeza que passam. Nem vou dizer da coceira que dá quando borrifam esse trem marrom no ferimento. Eu sigo sem forças para várias tarefas, mas agora o colchão está direto no chão, eu não preciso me esforçar para dormir no quentinho.
***
Hoje tiraram meus pontos. Foi um baita dum alívio. Não preciso mais usar aquele aparato no pescoço que me impede de fazer tudo. Talvez eu esteja melhor.
***
Toda semana estou frequentando esse lugar, que parece o das caixas, mas que é diferente. As pessoas se parecem, mas a disposição de tudo é diferente. Entro numa sala, sempre a mesma sala quente, e fico sentado nessa mesa de alumínio. Minha pata é raspada com máquina, colocam uma agulha enfiada na minha veia ligada à esse líquido transparente. Injetam algo nessa mangueirinha e sinto algo queimando se misturando ao meu sangue. É bem desagradável. Toda semana é isso. Ao final, recebo umas agulhadas com medicamentos debaixo da pele nas costas, costuma ser bem dolorido. Eu ainda não sei o que aconteceu comigo.
***
Já tem um tempo que não preciso mais ser medicado, já não me sinto mais fraco, minha vida voltou ao normal. Consigo correr, pular, latir e brincar sem sentir dores. Eu engordei alguns quilos, e nem tenho mais a aparência raquítica. Todo dia, antes de dormir, estão me dando um negócio com gosto de peixe, dizem que eu precisarei tomar pra sempre. É gostoso, faço questão de lembrá-los disso antes de deitar.
***
Ultimamente tenho tido dificuldades para urinar. Eu faço bastante força, e costuma sair sangue. Eu não sei o que fazer para que as pessoas percebam essa dificuldade. Mas acho que da última vez eu urinei um pouco de sangue. Acho que eles viram o meu esforço para que saísse isso. Talvez eles me levem ao médico, sei lá.
***
Que dor de cabeça horrível, odeio acordar assim. Nem acredito que estou dentro da caixa com portas de novo. Os rostos nas caixas são outros, não reconheço ninguém. Estou ligado nesse aparelho que enfia líquido na minha veia de novo. Esse troço desengonçado no meu pescoço voltou. Ainda sinto muitas dores e não consigo me lembrar de como cheguei aqui. Estava fazendo alguns exames, enfiaram umas mangueiras em mim, de repente acordo aqui. Não aguento mais isso.
***
Cheguei em casa bem desanimado. Dói bastante para urinar, parece que tem pontos novamente em mim. As pessoas que cuidam de mim limpam a saída do xixi constantemente, talvez os pontos estejam ali. Retomaram com a rotina destes remédios de sabor horrível, são muitos. Me faltam forças para reagir…
***
É estranho mijar por esse orifício que abriram em mim. Eu não sei porque fizeram isso, mas imagino que deva ser pela dor que eu sentia quando tentava fazer xixi. Agora não dói, mas ainda é estranho, talvez seja difícil de acostumar.
***
Fazem alguns meses que me sinto super bem, ativo como nunca. Não me levam na clínica há tempos, não sinto dores. Talvez sejam novos tempos, o sol até brilha mais forte que o normal.
***
Ultimamente tenho me sentido desanimado, o sol está queimando mais que o normal, tenho buscado sombras. As pessoas que cuidam de mim jogam uma bolinha ou um ossinho de corda, mas não sei se tenho muitas energias para interagir agora. Eu olho para esses objetos e fico pensando se vale a pena o esforço. Não vale.
***
Hoje aconteceu algo terrível. Fui tentar fazer cocô e senti algo que não devia escapar pelo ânus. Não era cocô, doía bastante e eu fiquei sem saber o que fazer. Corri para uma das pessoas que cuida de mim e fiz um estardalhaço. Ele me pegou no colo e fomos para a clínica. Lá, me deram uma injeção que eliminou a dor, e enfiaram de volta pra dentro o que não devia ter saído. Fizeram alguns pontos para evitar que saísse de novo. Foi horrível.
***
Os últimos dias foram complicados. O que não deveria sair pelo ânus saiu mais 3 vezes. Em duas delas, foi feito o mesmo procedimento de injeção e retorno pra dentro com o conteúdo. Na última vez, me sedaram. Acordei na caixa com porta, bem zonzo, tonto, desorientado. Sentia a dor abdominal, só que desta vez era diferente. Eu não aguento mais esse lugar.
***
As pessoas que cuidam de mim me buscaram, desta vez eu nem fiz festa, não tinha energias para isso, além de estar de saco cheio desse lugar. Em casa voltou a rotina dos remédios e da limpeza nos pontos. Eu já nem me importava mais com nada. Me sentia muito fraco para qualquer coisa.
***
Fazer cocô é uma atividade muito custosa, me traz muitas dores, e não sai nada. Toda vez que faço força, algo que não deveria sair pelo ânus escapa. Eu não aguento mais isso.
***
Me abriram de novo, não quero mais acordar nesse lugar… O que está acontecendo? Desta vez me deixaram aqui por uns 10 dias, morando nesta caixa com porta. Eu observava os rostos, muito desanimados, desolados, tristes… Não desejo isso para ninguém.
***
Estou em casa, as pessoas que cuidam de mim fazem carinho na minha cabeça. Não sei porque, mas minhas patas traseiras estão dormentes, não consigo levantar. Apenas tenho movimento nas dianteiras e no pescoço. Fico encarando as pessoas para ver se elas estão percebendo isso.
***
Minhas patas dianteiras param de funcionar, estão dormentes, não as sinto. Apenas meu pescoço se mexe. Uma das pessoas me carrega para o quarto e me coloca em um pano macio. Ela fica fazendo cafuné na minha cabeça a noite toda.
***
É de manhã, eu apenas consigo mexer os olhos. É uma sensação horrível, parece que não há nada no corpo que não sejam os olhos. Eu solto um grito de dor involuntário, e começa a faltar ar. Um das pessoas se senta ao meu lado chorando, fazendo carinho em mim e dizendo algo que não entendo. Apenas enxergo parte de toda a situação. Eu fico cada vez mais ofegante, respirando muito fundo, escutando um choro ao lado.
***
O último ar que circulou dentro de mim levou consigo toda minha essência. Já não pertenço mais à este lugar.
Obrigado por tudo,
e nos veremos em breve!

Lapsos de Tempo #7

Em casa

Escuto um barulho que me acorda. Abro os olhos, ainda estou deitado nesse objeto macio. Gosto de dormir nele porque meu corpo se encaixa muito bem e minha cabeça fica apoiada nessa parte lateral. Daqui eu consigo ver esses dois gigantes que roncam muito alto. Um deles se levantou para tomar líquido transparente e acabou trombando em algum objeto de madeira no caminho. Foi esse barulho que deve ter me acordado. Não tá na hora de levantar ainda, aquele aparelho eletrônico ainda não tocou a música horrível. Eu adquiri esse péssimo hábito de não conseguir mais dormir depois que a música horrível toca. Para me vingar, eu subo no quadrado macio que os gigantes dormem e faço questão de raspar minha língua na cara deles. Se eu não posso dormir, eles também não poderão. Raspar a língua na cara também vai fazer com que eles desliguem a música horrível, essa aberração tonal que toca todo dia de manhã…
Sigo deitado, apenas observando a horário que a música horrível vai tocar. A partir daí eu posso seguir com minha rotina. Os gigantes são muito frágeis no bueiro gigante, e eu faço questão de acompanhá-los quando eles estão lá. Eles vão todos os dias no mesmo horário. Não sei como aguentam essa rotina. Não sei como eu aguento essa rotina. Eles também possuem um aparato fino para usar após se levantarem do bueiro gigante, eu ainda não sei para que serve. Gosto apenas de desenrolar ele todo pra tentar entender os porquês da existência disso. Sigo sem saber.
Na cozinha o líquido transparente é colocado num objeto de metal, depois começa a pegar fogo por fora enquanto borbulha por dentro. Enquanto isso vou para a sala aproveitar o sol da manhã. Me disseram que é a melhor vitamina D que existe. Gosto de sentir os raios solares adentrando meus pelos enquanto sinto o cheiro agradável do líquido transparente se tornando líquido preto. Nunca me deram isso para beber, só me dão líquido transparente. Talvez seja uma coisa de gigantes.
Começou a ficar quente demais, me levanto e vou para a sombra. Faço isso enquanto observo os gigantes bebendo líquido preto e comendo algo que eles não me deixam comer. Eles proferem sons em concordância, até parece que se entendem. Um emite um som enquanto o outro não emite som. Às vezes eles emitem esses sons se direcionando a mim, como se eu soubesse do que eles estão proferindo sons.
Ambos saem desse local, fico aqui pensando no que devo fazer em todo esse tempo que ficarei sozinho. Tem vários objetos macios onde posso deitar, mas não sei se quero dormir agora. Tem um buraco no local ao lado, parece que tem algo acontecendo ali. Acho que será um bom passatempo observar dentro do buraco. Fico de saco cheio, deito um pouco em cima de um objeto de madeira, só que ao lado da vegetação. Vou na cozinha ver o que está de fácil acesso e que mate minha fome. Não há nada. Até tento saltar na borda do objeto de madeira, mas não há migalhas desta vez.
Olho pra sala e algo brilha, chama minha atenção. Vou para lá correndo e me deparo com um objeto de plástico no chão. Ele possui algum líquido dentro, mas tem uma coisa de plástico que parece impedir que o líquido saia. Me coloco a missão de retirar esse plástico que impede o líquido de sair. Isso ocupa boa parte do meu tempo sozinho. Meus dentes são fortes, mas acho que tiveram dificuldades com esse objeto. Quando eu consigo remover o plástico, o líquido escorre no chão. Eu não sei o que fazer, como que se limpa uma sujeira? Devo raspar a língua? Os gigantes devem voltar e eu não sei como esconder isso. Deito em cima como se a sujeira fosse um objeto macio. Mas logo me levanto por me sentir incomodado com a sensação do líquido na pele. Tento raspar a língua, mas o gosto não é legal e eu acabo desistindo.
A tensão me deixa imóvel e eu não sei o que fazer. Olho para a sujeira que o líquido fez e a fico encarando, maquinando possibilidades. Adormeço sem ver.
Escuto um barulho na rua e desperto rapidamente. É o barulho do objeto de metal que protege o buraco que entra o equipamento mecânico. Os gigantes estão chegando. Me lembro da sujeira e começo a correr e latir, sem saber o que fazer. Não encontro a sujeira, talvez alguém tenha limpado.
Tô aliviado. Corro para o buraco por onde os gigantes entram no local. Estou feliz, eles não perceberão que fiz sujeira e eu não fico mais sozinho.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X PB 200

Na rua

Escuto alguém me chamar lá fora. Vou correndo para entender melhor o que está acontecendo. Me aproximo da grade e vejo a Pequetita passando pelo lado de lá da rua. Ela anda meio pomposa, empinando o bumbum pro pequeno rabo ficar mais aparente. Mas esse hábito faz com que ela caminhe dando alguns pequenos saltos. Seus pelos são de cor clara, contrasta com a calçada escura. Pequetita me avista e, sem cumprimentar, grita em minha direção que a árvore da rua foi contaminada. No meu tempo de reação eu só consigo perguntar de volta quem foi o autor da contaminação. Ela grita que não sabe, mas foi alguém novo. O perfume que estava na árvore era diferente de qualquer outro lugar da região. Eu agradeço e aproveito o dia claro para me deter no sol por alguns minutos. Logo após a Pequetita, o Caquito passou pela rua. Ele me viu, mas fingiu que eu não estava ali. Prefiro contar sobre a contaminação para quem quer saber, Caquito me esnobou, não gostei. Sigo olhando para a rua, Suzi passa e eu aviso que a árvore está contaminada. Ela me responde, diz que a Pequetita já avisou a ela, mas que ela precisava ir na árvore conferir a nova fragrância. Eu digo que só irei de noite, mas que gostaria de saber as atualizações no decorrer da tarde. Suzi segue caminho e se detém na árvore da rua. Eu fico observando. Ela sente o cheiro e olha para mim, confirmando que é alguém diferente. Isso me deixa mais curioso. Tinoco vem descendo a rua. Ele é mais parrudo, curte subir numas árvores. Já fiquei sabendo que ele até já subiu muro. Da rua, eu acho que ele é o mais ágil. Mas eu o vejo pouco, ele vive um pouco mais distante, mas sempre cumprimenta quando passa por aqui. Uma vez ele disse que me traria um pedaço de osso e deixaria aqui na minha porta, eu agradeci, mas recusei a oferta. Ossos não me fazem bem. Tinoco parou na árvore, trocou algumas palavras incompreensíveis com Suzi, e me olhou. Será que a Suzi falou de mim? Tinoco desceu mais e parou aqui em frente, perguntou o que eu já sabia do caso da árvore. Eu disse que havia uma nova fragrância que contaminou a árvore e que era de alguém desconhecido. Ele me confirmou a informação, disse que eu deveria ser mais enxerido pra coletar informações. Eu disse que tentaria, mas nem sempre dá tempo. Tinoco fingiu que estava caçando lugar para defecar enquanto conversávamos. Depois de um tempo despistando, ele seguiu viagem. Ver ele despistando me deu vontade de mijar. Aqui neste espaço tem plantas, e eu posso liberar o xixi aqui sem perder as atualizações sobre a contaminação da árvore da rua. Fiquei algum tempo olhando para a árvore da rua, o que poderia ter contaminado ela? Preto e Branco estão subindo a rua. Eu acho que eles são irmãos, mas não tenho certeza. Eles são parecidos, exceto pela cor curiosa de seus pelos, um é claro e o outro é escuro. Eu nunca sei quem é quem. Quando os vejo subindo eu só os chamo de Zé. É muito mais fácil e ambos atendem. Eu aviso que a árvore da rua foi contaminada por alguém desconhecido. Eles apenas acenam, não dizem nada de volta. Acho que eles têm medo de gritar muito alto e serem punidos por isso. Pelo menos fiz minha parte em avisar. Eu apoio a cabeça na grade e me concentro na árvore da rua. Quero sabe em primeira mão a origem da fragrância que contaminou a árvore da rua. Mas depois de tanto tempo, não avisto nada de anormal. Pingolino mora em frente à árvore, em breve tá na hora dele sair pra dar uma volta. Talvez ele tenha mais informações sobre o caso. Roger passa antes, avisando que talvez não seja bom verificar o odor, pois se contaminou a árvore, sabe-se lá o que pode fazer com a gente. Margarete diz que é uma fragrância meio doce, estranha, que deixa a gente enjoado. E se todos adoecermos por causa dessa contaminação? Avisto o portão abrindo e Pingolino está dando as caras, finalmente. Ele sai, analisa a árvore, e começa a buscar possíveis ouvintes pro seu caso a solucionar. Ele me avista e vem na minha direção. Ele me diz que viu algo preto sair de um negócio vermelho, cair na árvore da rua e começar a borbulhar. Foi isso que contaminou a árvore. Não foi um desconhecido, porque não foi um de nós. Eu tento ficar mais tranquilo em saber que não tem desconhecidos contaminando a árvore da rua, mas me preocupa esse líquido preto borbulhante e adocicado que contamina tudo…

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação

Lapsos de Tempo #6

Pedrinhas – Lugar Mágico

Em toda grande metrópole há um sítio grandemente benquisto por seus habitantes locais. Imagina um lugar que funciona como um ponto de encontro para fortalecer o lado social; um lugar cujos turistas e viajantes fotografam sem piedade e de maneira predatória buscando o ângulo perfeito; um lugar que, de tão nobre, mostrou ao mundo toda sua magia e encanto. Hoje me dedicarei a apresentar Pedrinhas, lugar mágico no pequeno grande povoado de Bonito Cenário Profundo.
Bonito Cenário Profundo emergiu como um povoado a partir da ocupação dos grandes vales que se encontram ao centro de uma placa tectônica estável. Geologicamente monótono, o povoado ganhou fama na década de 30 por apostar alto em uma arquitetura fantasiosa, que remetia à um certo futurismo Jetsoniano, uma visão bem à frente de seu tempo. O povoado desenvolveu-se com vários campos tecnológicos de extração, exploração, estudos e indústrias do mineral abundante em seu solo, o Gnaisse, que viria a ser o símbolo de que o porvir já havia chegado ao presente, e que o presente, agora, já era coisa do passado.
O circuito de produção e desenvolvimento era tão complexo para a época, que foram necessários 90 anos para que várias ideias de urbanismo fossem colocadas em prática, mesmo depois da compreensão falida em relação ao modelo de cidade futurista que foi pensada naqueles tempos. O Gnaisse, rocha de extrema dureza, era retirado do solo para servir de estrutura das torres que eram utilizadas de escritórios e residências. O espaço deixado pelas rochas no solo, era ocupado por água de rios, fazendo com que os vales se enchessem rapidamente e inundassem as cavernas rochosas por baixo da cidade.
Com o passar do tempo e a indisponibilidade de recursos para extração e estudos, além do baixo investimentos em tecnologias de produção, as construções em Gnaisse tiveram que ser abandonadas, transformando o povoado de Bonito Cenário Profundo em um povo fantasma, um grande vale úmido com imensas torres de pedra.
A virada de jogo apareceu quando pessoas de várias partes do mundo, aterrissavam na região para conhecer a cidade perdida de Gnaisse. Várias lendas, mitos, boatos e rumores correram os quatro cantos do globo terrestre, e a cidade compreendeu um verdadeiro boom populacional, com muitas pessoas interessadas em viver na região.
Acontece que com o passar dos anos, parte da história se perdeu. Quem vivenciou o auge político-econômico da região já não se encontra mais neste plano. Porém, um resquício da história pode ser vista a olhos nus na região que ficou conhecida como “Pedrinhas”. Pedrinhas é um complexo de três grandes blocos de Gnaisse, possivelmente utilizados na construção civil, e que se tornaram parte definitiva da história que é contada hoje. Os blocos já foram solo, já foram torres, e agora são bancos.
Os moradores que costumam se encontrar no sítio arqueológico são autodenominados Gnaissianos, e eles podem sentir forças mágicas que atuam na região dos blocos. Há quem diga que existe um momento do dia em que se pode escutar vozes vindas dos blocos, mas é apenas em um momento específico em que o sol ilumina por igual as três grandes rochas.
O Governo local conseguiu um alvará no Ministério Internacional de Exploração do Turismo em Lugares Mágicos para utilizar o rótulo de “Lugar Mágico”, comprovando que muito do que se falava sobre a região é, de fato, realidade. Pedrinhas entrou na lista dos lugares mais visitados do mundo, perdendo apenas para Paris na França, mas conta com o maior número de hashtags publicadas nas redes sociais, liderando as buscas por turismo fotográfico.
Pedrinhas, Lugar Mágico, badalado e agitado no coração cêntrico da região monótona de Bonito Cenário Profundo.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação

Lapsos de Tempo #5

Trajetos com pensamentos fluidos

Para dar movimento impulsiono com meu pé direito ao mesmo tempo em que salto passando a perna por cima do banco. A rotação do pedivela me permite fazer todo o movimento sem parar a aceleração. Com o pé esquerdo posicionado ajusto meus ísquios para ter maior apoio. Olho adiante e traço uma rota imaginária, meu pensamento como se fosse um drone transitando nas ruas e deixando um rastro de sua passagem. Tenho meu caminho planejado, só preciso transita-lo. Um quarteirão adiante está situado o local onde se produz minha pizza favorita. Lembro de uma massa fina, com molho de tomate, folhas, queijo vegetal, alguns legumes e palmito. Meu estômago ronca ao perceber a fragância suave do forno que está com a chama acesa. Passo direto e viro a primeira esquerda, no semáforo. É uma rua mais larga, mais movimentada, mais longa. Desço até o semáforo que está aberto, cruzo a avenida e sigo adiante. Nesta rua estudei por dois anos. Fiz algumas amizades, tive alguns amores, aprendi bastante nesta época. Tinha acabado de sair da adolescência, já era um adulto, mas ainda possuía a vitalidade juvenil de perambular por estes lados. Vejo o local onde estudei, abandonado, sujo, morada de ratos e entulhos. O que aconteceu para chegar à essa situação? Passo direto, vejo o restaurante que não me deixaram entrar para almoçar enquanto estudante na região. Afinal, “um punk vestido a caráter não pode frequentar um lugar como esse!”, é proibido. Melhor passar fome do que me misturar com essa gente de caráter duvidoso. O restaurante está razoavelmente cheio, alguns poucos lugares vazios, todas as pessoas desfilando seus melhores trajes empresariais e sorrisos falsos. Dou uma risada irônica ao pensar nisso tudo, e sigo rotacionando o eixo do pedal, que rotaciona o eixo central de bicicleta. O movimento é contínuo. Depois do próximo semáforo, cortaremos uma avenida larga, de oito pistas, mão e contramão. É uma avenida interessante, com coqueiros no canteiro central. Desvio de duas tampas de bueiro que indicam que embaixo do pavimento há córregos, presos e algemados na claustrofobia da tubulação canalizada. Sigo adiante na descida para a praça da Igreja. É uma descida relativamente íngreme, onde preciso ter cuidado para não ser atropelado. Na primeira esquina, um carro se detém ao ver o sinal de “PARE” bem em frente a um outro restaurante onde eu costumava almoçar. Era caro, mas pelo menos me deixavam entrar para comer. A comida era boa, com muitas opções para quem é ovolactovegetariano. Na esquina de baixo chego na praça arborizada, que a Igreja transformou em um grande estacionamento. Penso comigo mesmo que nem se pode mais chamar isso de “praça”. Sigo direto frustrado com a imagem do apocalipse motorizado em um local que poderia, muito bem, estar liberado para o ser humano. Viro à direita, acesso a pista exclusiva de ônibus, mas que não possui separação física em relação às outras pistas, e aumento a velocidade. Esta rua já possui um movimento de automóveis de forma mais intensa. Acesso o corredor que foi criado entre os veículos que aguardam a luz verde, e me detenho por sobre a faixa de pedestres. Olho para a Avenida, sinto um fluxo de brisa fresca misturada com o calor dos motores que roncam atrás de mim. Na luz que me permite seguir, arranco a bicicleta do chão e tento forçar uma velocidade maior. Tenho sempre receio de que algum veículo mais veloz passará por cima de mim nessas arrancadas. Sigo para a região onde se situam vários hospitais e clínicas, logo após a Avenida principal da cidade. Vejo o Pronto Socorro e surge uma memória ruim de um atropelamento que sofri alguns anos atrás. O motorista ignorou minha presença e me acertou de lado. Parei no pronto socorro com fraturas no joelho e no calcanhar, 6 meses de molho, fazendo fisioterapia para conseguir voltar com as atividades rotineiras. Ainda acho que tive sorte de não ter sofrido algo mais grave. Ao passar pela portaria do Hospital agradeço a qualquer força da natureza por não ter sofrido nada mais preocupante. Sigo adiante, vou cruzar o viaduto e já chego em casa. O viaduto possui uma subida leve, mas eu conheço alguns atalhos para cortar caminho e evitar o pequeno morro. Geralmente eu gosto de subir morros, sentir minhas panturrilhas trabalhando, mas hoje eu estou cansado. Só quero chegar em casa, tomar banho e descansar. São dois quarteirões planos por baixo do viaduto, uma leve subida à esquerda, dois quarteirões de leve subida à direita, mais três quadras de plano e já me encontro do lado de lá. É um trajeto onde passo contra a mão dos automóveis. Corro risco, mas é necessário para evitar a fadiga. Cruzo o viaduto fazendo um movimento perpendicular, aproveitando a detenção dos automóveis no semáforo do início do viaduto. Passo em frente um bar onde tem as melhores batatas fritas, aquelas de verdade, pedaços grandes, frescos e com casca. Apesar da água na boca que surge com a lembrança, prefiro seguir mais um quarteirão e já avistar minha humilde residência. Acelero para ultrapassar a linha de chegada imaginária e solto um suspiro aliviado por chegar em casa com vida. Cansado, exausto e endorfinado. Passo a perna por cima do banco fazendo um movimento de saída e salto da bicicleta de forma ágil. Apoio a bicicleta na parede enquanto abro o portão. Guardo a bicicleta com tranca, pois no bairro são vários os furtos e roubos deste tipo de veículo. Abro a casa, tomo um banho e me sento no sofá para relaxar. Não consigo parar de pensar que eu deveria ter comprado a pizza logo quando subi na bicicleta.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação

Lapsos de Tempo #4

Passagens

Era meados da tarde. O sol vinha na diagonal, forte e intenso. Estou entre automóveis, seguindo a linha tracejada branca que separa as pistas. Tenho olhar atento para setas piscadas e movimentos bruscos. Qualquer coisa pode significar minha queda. Tenho receio de ultrapassar, mas me sinto seguro para acelerar quando vejo os olhos do motorista pelo retrovisor. Ele me observa por tempo curto, segundos que me indicam a segurança da ultrapassagem. Ele me vê, desloca um pouco para a direita deixando vão aberto. Não sei se ele está preocupado comigo em cima da bicicleta e o estrago que eu poderia sofrer em um possível choque, ou com a possibilidade da lataria do veículo dele ser arranhada com meu contato. Eu passo, seguro e confiante, acelero a rotação porque vem uma reta plana. Não há semáforos, mas ainda assim o trânsito de veículos automotores segue em ritmo lento. Atrás de mim uma moto se aproxima. Não há como sair da frente, não há por onde escapar. Eu acelero mais ainda a rotação, pois vejo um vão livre por onde a passagem flui. Conto com minha destreza em costurar para compreender quais os lugares onde posso passar sem maiores problemas. Retrovisores pareados, fluindo a um ritmo lento me trazem tensões, mas ainda consigo passar apertado entre automóveis. A moto fica para trás. Vejo um longo corredor aberto, livre de obstáculos. Foco no ponto de fuga que surge na linha do horizonte, olhar concentrado para a utopia. O vento bate forte na minha cara, secam meus olhos ao mesmo tempo que deixa escapar uma lágrima involuntária. Eu entrefecho as pálpebras para melhorar a visão. Um caminhão ocupa mais espaço de pista que o automóvel a seu lado. Aproveito a brecha deixada por um automóvel, olho para trás, rápido e discreto, e consigo quebrar uma diagonal para mudar de corredor. O carro se assustou e hesitou em frear, mas eu já havia passado. O coração batia forte, a adrenalina estava alta. A respiração começa a falhar pelo esforço, pelo calor e pela poluição. Opto por dar respiradas mais longas, puxando pelo nariz e soltando pela boca. Tarefa difícil de se fazer quando se já está cansado e ofegante. Mas ainda tem muito trajeto pela frente. Neste corredor os automóveis são mais impacientes, mudam de faixa como se fosse adiantar alguma coisa. Não consigo manter velocidade constante. Freio, acelero, freio, acelero, acelero mais, dou a volta. Alguns carros não conseguem mudar de faixa por completo e a parte traseira come parte do corredor. Eu desvio e sigo com rotação intensa. A faixa branca tracejada atropela tampas de bueiro. Me desagrada muito o relevo dos bueiros no meio da pista, instabiliza a bicicleta, fico inseguro. Quero retornar para o outro corredor, mas não encontro espaços para fazer a manobra. Além do que, várias motos já fizeram um grande corredor na pista de lá, com suas buzinas irritantes e escapamentos barulhentos. Decido seguir por cima dos bueiros, pelo menos eles estão com tampa. Mais adiante, vejo um semáforo fechado. Começo a observar se existe algum sinal de que ele irá abrir e eu não precise frear. Estou atento à qualquer mudança de padrão da ordem contextual vigente. Na rua transversal os carros começam a ir mais devagar, o semáforo de pedestres começa a piscar no vermelho, escuto alguns câmbios se encaixando com uma embreagem mal pisada. Escuto controles de embreagem desnecessários em uma reta plana. Aos sinais eu acelero mais ainda a rotação. Confiro se não há pedestres retardatários e me concentro nos próximos movimentos. Quero cruzar todas as pistas, passando pela frente de todos os automóveis que ainda não arrancaram, e acessar a rua transversal. Minha velocidade me permite, minha disposição me encoraja. Eu me arrisco e vou, livre e confiante. Acesso à rua, e um novo corredor se inicia. As pequenas vitórias duram pouco tempo para serem contadas em seus mínimos detalhes.
***
Era fim de tarde, início da noite. Quase naquele momento que gostamos chamar de “luscofusca“. Nem tão claro a ponto de conseguirmos enxergar tudo, nem tão escuro a ponto da luz artificial fazer alguma diferença na luminosidade. Eu andava tranquilo por um viaduto, levemente inclinado para cima. Várias pessoas passavam por mim, todas desconhecidas. Ninguém me cumprimentou, não cumprimentei ninguém. Mal nos olhávamos nos olhos. Ninguém me observou, eu não observei ninguém. Eu olhava para o que seriam meus próximos passos. Olhava os automóveis trafegando em câmera lenta, ora engarrafados. Via os edifícios que se aproximavam a cada passo. Olhava toda a matéria morta que se encontrava ao meu redor. Seguia meus passos sem olhar as pessoas. A gente fica duro quando caminha pela cidade grande…

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X 200 BW

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação

Lapsos de Tempo #3

Para cima ou para baixo

– Papai, porque as casas ficam umas em cima das outras?
– Como assim filho?
– Eu olho pela janela, e vejo esse amontoado de casas, uma em cima das outras. Porque elas são assim? Porque os prédios são tão altos?
– Filho, os seres humanos possuem duas formas de interagir com o mundo. Elas são interligadas, uma só existe por causa da outra. Uma tem a ver com a destruição, outra com a construção.
– Não entendi…
– Calma que irei te explicar.

– Já fazem muitos e muitos anos que as pessoas decidiram que gostariam de viver umas perto das outras em espaços de terra que chamaram cidades. Nós hoje vivemos em uma cidade considerada grande. Porém, a cidade não pode existir sem que tenha alguma estrutura que a construa, que abrigue as pessoas, que possa funcionar de alguma maneira. Portanto, dois fenômenos não naturais são muito praticados, e de uma maneira que é bem forte se pararmos para pensar sobre isso.
O primeiro deles diz respeito à construção. As cidades ocupam pequenos pedaços de terra que precisam abrigar um número enorme de pessoas. Portanto, essas pessoas decidiram que queriam subir cada vez mais alto, para caber mais e mais pessoas. Os prédios possuem cada vez mais andares, alcançando alturas inimagináveis. As casas começaram a subir os morros, a ter mais andares pra comportar mais famílias, e ninguém considera o impacto dessa concentração populacional em lugares que já não suportam mais pessoas. As bordas dos rios, córregos e ribeirões já estão tomados por concreto e suas águas já são puro dejetos.
Tudo isso também vem acompanhado de uma produção de bens móveis que são consumidos e descartados aos montes. São coisas essenciais e não-essenciais que fazem parte da vida citadina, mantém o comércio aquecido e a economia girando, geram prazer, deleite, ajudam no social e no profissional. Tudo isto que consumimos hoje são essas coisas que logo serão descartadas. Inclusive alimentos, roupas e itens de higiene pessoal.
O segundo fenômeno é o da destruição. Tudo isso que precisa ser construído sai de algum lugar. Os seres humanos decidiram que era uma ótima ideia criarmos crateras gigantes, de onde pudéssemos extrair de forma predatória todos os recursos do planeta terra, para construirmos mais e mais abrigos, mais e mais itens de consumo essenciais e não-essenciais para a vida no espaço urbano. Acabamos dependendo de tudo isso, da destruição do solo, das matas, dos rios, dos recursos terrenos que são nossa sobrevivência.

– Mas, papai, se precisamos disso para construir abrigos e alimentos, é porque é necessário, não?
– Filho, aqui nós precisamos pensar de uma maneira mais profunda. Nós estamos destruindo o solo e a superfície, esgotando todos nossos recursos para chegar cada vez mais alto com nossos estilos de vida.
Pensa em uma analogia que pode ser interessante: Enquanto construímos nossas casas e abrigos cada vez mais perto do céu, nos aproximamos do inferno a cada vez que destruímos a terra para explorar de maneira predatória seus recursos. O meio termo seria um estilo de vida mais equilibrado, que não fosse tão predatório e que não precisasse amontoar tanta gente num mesmo espaço de terra.
É impensável o que nos aguarda no futuro se mantivermos esse ritmo de construção e de destruição. Lembra daquele cientista que disse que nada se cria, tudo se transforma? E se tudo que passa por uma transformação fosse caminhar para algo pior? Embora hoje tenhamos algumas facilidades, ainda não se justifica o caos do porvir.

– Não sei se entendi bem, papai…
– Quer que eu tente explicar de outra forma?
– Não, você fala muita coisa que não dá pra entender. Melhor deixar pra lá…

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação

Lapsos de Tempo #2

Portuñol avançado

– Olá, bom dia! São ameixas?
– Hola mijita, como vá? Son ciruelas, te salen diez Reales la bolsita.
– Mas isso não parece seriguela, parece mais ameixa…
– Pues son ciruelas… Si quieres, las puede elegirlas tu.
– Obrigada… Posso escolher qualquer uma?
– Si, pero estas de la derecha las tengo que botar…
– Botar na sacola?
– No, las tengo que botar, tirar!
– Botar na sacola e tirar da banquinha?
– No, no, no! Ya están malas. No sirven. Hay que desecharlas. No van para la bolsita!
– Hummm… Entendi… Dez Reais, né?
– Diez por la bolsita llena.
– É isso mesmo! Vou pegar o dinheiro!!
Que se sinta segura, pues te cuida el oso!
– Que osso?
El osito, te mira y te guarda.
– Mas onde que tem osso aqui? É tipo um osso da sorte?
No sé si de suerte, pero es una buen línea pa’ que el cliente se sinta seguro!
– E onde que eu acho esse osso?
Te mira desde el vidrio. Le regale una buen sonrisa!
– Óh!! Hahahaha, não tinha percebido.
– A toda la gente él sabe como sacar una sonrisa.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Samsumg 200 color, vencido.

Eu sei o que estou fazendo, Roberto!

– Você está mexendo no lugar errado, Silvano! Essa mangueira liga diretamente no motor!
– Mas eu lembro de como tava antes! O motor pifou, eu vim aqui pra abrir o capô e eu vi essa mangueira soltar!
– Mas eu tô te dizendo que ela liga diretamente no motor. Não faz sentido ligar no reservatório de líquido arrefecedor!
– Não tem líquido arrefecedor aqui, esse motor tem radiador, ele usa água!
– Água? Não tem dessa não! Nenhum carro produzido depois dos anos 60 usa água. Água só se for pra limpar o pára-brisa!
– Deixe eu fazer o trem aqui Sô, cê fica aí dando pitaco errado. Eu sei como estava antes, isso já aconteceu outras vezes.
– Não Silvano, cê tá tentando enfiar uma mangueira onde não tem lugar pra enfiar, deixa de ser ignorante!
– Se bem que o problema parece estar na válvula esquerda, olha como ela está diferente das outras!
– Com certeza não é esse o problema, cê fica testando coisas que não tem a ver nada com nada, e não consegue enxergar o problema principal!
– Bixo, eu consegui arrumar das outras vezes numa boa! Só porque você tá aqui que esse trem num arruma.
– Agora a culpa é minha?
– Sempre foi. Tô te falando que já rolou isso antes e eu consegui arrumar…
– Arrumou tão bem arrumado que deu problema de novo na mesma coisa. Para de fazer gambiarra, Sô!
– Eu sei o que tô fazendo, Roberto! Faria mais rápido se você num tivesse aqui me enchendo!
– O sinal já abriu e fechou 20 vezes e você continua aí achando que sabe de alguma coisa.
– Aqui cê dêxa! Puta merda, eu mereço…

La Idea, 2023. Canon BF-800, Fomapan BW 100

Curtiu este post? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com OU escolha um valor abaixo para contribuir com cartão de crédito:

R$2,00
R$5,00
R$10,00

Ou insira uma quantia personalizada

R$

Agradeço sua contribuição.

Faça uma doação