2024 – #1 – Futuro

Juliana olhava para o horizonte enquanto pensava em Eduardo e suas belas palavras. Eduardo havia falado com ela sobre passos, que caminham rumo a algum lugar que, talvez, nunca chegue. Juliana entendeu como se fosse um processo de não saber para onde ir ou qual o caminho percorrer.
Imaginou uma bifurcação sem placas, sem direcionamentos, sem sentidos. Ambos trajetos levariam a algum lugar, ou poderiam levar a lugar algum. Ela imaginou se dividindo, e cada metade de seu corpo percorria um dos lados da bifurcação. Ela se bifurcou para entender qual a melhor forma de seus passos alcançarem o horizonte.
Os trajetos se entrecruzaram por várias vezes, passavam por cima, por debaixo, ficavam paralelos, seguiam juntos, desapareciam e voltavam a aparecer sem motivo aparente. Possuíam diferentes obstáculos, impedimentos, perigos diversos. O corpo bifurcado enfrentava tudo isso, se deteriorava, se recuperava quando encontrava com sua metade, e voltava a se destruir no percalço do trajeto.
O horizonte nunca chegou. Juliana não conseguiu entender para onde seus passos a levavam. Descobriu que o horizonte é imprevisível, o trajeto até lá é difícil e custoso, imaginar o porvir é sempre muito complexo.
Mas ela bem que curtiu.

Lapsos de Tempo #11

Anti-horário

O pogo sempre gira para um determinado lado. Pogo é o equivalente ao mosh, ao bate-cabeça, à muvuca que ocorre nas gigs punks ao iniciar uma música. Funciona de uma maneira simples: o som começa e você inicia a girar em torno do centro do público enquanto faz movimentos [des]coordenados entre pés, mãos, cabeça e tronco. Cada qual a sua maneira, os movimentos diferem entre as pessoas participantes, mas aqui ocorrem algumas situações que são comuns à todxs.
Estas situações dizem respeitos à regras não escritas, mas que são internalizadas pelxs dançarinxs: 1) se alguém cair no chão, proteja a pessoa e a ajude a levantar; 2) o ritmo da música sempre ditará a velocidade da roda que gira; e o mais importante: 3) o giro é sempre anti-horário.
Não adianta tentar mudar o sentido do giro, não funciona. Mudar o giro é algo que é tentado desde os anos 80, sempre sem sucesso.
Nos anos 2010 ocorreu a Primeira Reunião de Pogadores Amadores do litoral sul da Praia de Menezes. Nesta reunião as pessoas debateram a mudança do que ficou conhecido como Paradigma do Sentido. A proposta não é mudar a direção do pogo (circular sempre), mas de discutir a possibilidade da alteração do sentido (horário/anti-horário). O grupo a favor da mudança argumenta que o tradicionalismo deveria sofrer um rompimento, pois o ideal punk sugere sempre uma afronta à ordem estabelecida. E isso, por si só, já deveria ser uma razão sem contestação.
O outro grupo, ao contrário, argumentou que o punk é anti-sistema o tempo todo, e que ir contra o padrão estabelecido pelo giro do relógio é o ponto de partida para se pensar o sentido do giro. A questão, a meu ver, é que ambos grupos estavam discutindo qual deveria ser o maior rompimento com o sistema. Romper com o padrão ou romper com o rompimento do padrão?
Nunca houve um consenso sobre isso. A Reunião acabou com Punkadaria, banda atuante na época, e o pogo foi sentido anti-horário, sem confusões, conflitos ou incidentes.
Nunca houve outra Reunião. O Paradigma do Sentido ficou completamente esvaziado.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Vícios

Durante muito tempo eu fui um viciado. Existia algo que me prendia forte, não me deixava escapar, me segurava com todas as forças. Eu não dormia, nem comia, não tinha interações que não fossem para sanar meu desejo mais profundo e incontrolável.
Tudo começou com vídeos de toboáguas. Eu seguia vários canais do YouTube de pessoas que filmavam suas descidas. Eram descidas longas, sinuosas, molhadas, com vistas deslumbrantes. O protagonista da descida apoiava a câmera na cabeça ou no peito. Possuía shorts com sua marca e apoio para os pés para que não escorregasse ao subir as escadas que davam acesso ao início da queda.
Logo, eu passei a assistir os milhares de vídeos sobre o Tsunami que ocorreu em 2011, na cidade de Fukushima, Japão. Eram vídeos impressionantes de desastres, caos, vidas e histórias sendo levadas pela correnteza. São imagens incríveis e impressionantes, registradas com a melhor tecnologia da época. Destruição que me deixava vidrado por horas.
Um tempo depois, parti para a visão da cabine do piloto de composições como metrôs, trens, bondes e VLT´s. Fora meses e meses assistindo belas paisagens rurais e urbanas, trilhos, neves, túneis, estações, acidentes e climas diferentes. Vi de tudo em tempo real, inclusive viagens longas interestaduais.
Daí eu passei para a fase Frisbee Golf. Era um esporte estranho, que misturava a chatice do golf com a diversão do frisbee. Pessoas muito habilidosas, sem porte de atleta, lançavam o frisbee em meio à arvores, arbustos e lagos, e que traçava caminhos sinuosos, longos, e acertavam em cheio algo que parece uma lixeira de correntinhas no meio do nada. Assisti a vários torneios sem entender muito bem como a pessoa sabia onde estava o alvo a ser acertado. Nunca fez sentido para mim.
A fase mais perigosa surgiu quando eu me viciei em vídeos de motoristas fazendo merdas com seus carros e causando batidas violentíssimas. Pessoas inconsequentes causando a destruição por motivos egoístas e fúteis. Carros que acessavam a contra mão em alta velocidade, acertavam outros dois, atravessavam o baú de caminhões e explodiam em algum muro dando sopa. Foi terrível.
Decidi ir por um caminho mais leve. Passei a assistir ciclistas urbanos em suas bicicletas fixas andando perigosamente pelas ruas de diferentes grandes cidades mundiais. Essas pessoas aterrorizavam pedestres distraídos, faziam ultrapassagens perigosas em corredores estreitos, freiavam com skidz que eu tenho minha dúvida sobre sua eficácia. Foram vários cenários urbanos que faziam parte desta insanidade adrenalinada.
Logo após esta fase, surgiu em minha vida o Calcio Storico Fiorentino, um jogo tradicionalíssimo em Florença, na Itália, que, pelo seu grau de brutalidade, só pode ser jogado uma única vez ao ano. Acompanhei os torneios de 2021, 2022 e 2023, em seguida, e me impressiona o quanto essas pessoas conseguem se manter de pé. Demorei algumas partidas até entender as regras do jogo, e depois de tanto tempo, ainda acho que talvez apenas compreendo o objetivo.
O vulcão ativo das Ilhas Canárias foi algo que me manteve desperto e paralisado o dia inteiro. Eu assistia aos canais de transmissão ao vivo. Vi a lava descendo calmamente e destruindo lares, cidades, vegetações, ecossistemas, não conseguia parar de assistir.
Depois, veio a onda Bo-taoshi. Um jogo japonês em que duas equipes brigam para derrubar o mastro uma da outra. Intenso, rápido, bruto. Assisti a várias partidas entre diferentes equipes. Nunca vi pessoas se mobilizarem tanto por uma partida tão curta. Você acaba começando a torcer por alguma equipe, ou torce pelas duas, afinal, o que vale é assistir a um belo espetáculo.
Por último, passei a assistir vídeos de uma empresa dos Estados Unidos que limpava tapetes e carpetes imundos. É prazeroso ver todo o processo, rodo, vassoura, limpadora elétrica, escova, jato de pressão. Um verdadeiro deleite para os olhos.
Hoje eu consegui sair deste vício.
No mais, passo meus dias junto com meus amigos assistindo patos interagindo entre si na lagoa do Parque. Você já percebeu que o bico dos patos parecem lobos?

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Ruim demais para ser mentira #5

Brinco

Quando eu era pequeno eu decidi colocar um brinco na minha orelha. Foi uma decisão bem difícil, eu fui apoiado pelo meu pai, mas não fui pela minha mãe. Minha ideia era simples, colocar um brinco de argolinha com um pequeno crucifixo pendurado, pois era assim que o Romário usava. Era meados dos anos 90 e essa moda imperava naquela época.
Na minha cabeça ia dar tudo certo e eu passaria a jogar bem futebol e a parecer marrento e folgado nas fotos de família. Os paparazzis conhecidos como “minhas tias, tios, primos e amigos” iriam adorar minha pose. Pensando agora, talvez eu tenha ficado com uma vibe mais Vitin Avassalador Sou Foda, mas sei lá, na época eu nem sabia da existência desse sujeito.
Eu poderia dizer o dia certo em que fomos na farmácia, mas podia ser qualquer dia, afinal, meu pai e eu fomos na farmácia do bairro durante uma tarde buscar quem furava orelha e se tinha como furar com argola. Para minha tristeza e decepção, não tinha. Conversando com o funcionário da farmácia, descobrimos que não tinha como. Na farmácia eles utilizam uma pistola de pressão para fazer o furo, e ela somente funciona com brincos pequenos e retos. Minha primeira frustração. Apesar disto, escolhi o brinco com a pedra preciosa mais bonita (pois todas as opções haviam pedras brilhantes no brinco) e fui para os fundos preparar meu lóbulo para receber o impacto da pistola.
O processo é doloroso, mas é bem rápido. Você meio que escuta as camadas sendo perfuradas e atravessadas. O processo é veloz, mas agora parece que foi em câmera lenta. Saí da salinha dos fundos para mostrar para o meu pai o quanto eu estava estiloso e marrento. Agora ninguém me seguraria, eu estava Foda!
Enquanto meu pai pagava pela aplicação, eu escutava atentamente os cuidados que eu deveria ter para uma boa cicatrização. Me lembro de ouvir atentamente o funcionário dizer que eu deveria rodar várias vezes ao dia para cicatrizar bem. Eu levei a sério. Rodava enquanto andava, enquanto dormia, enquanto tomava banho, enquanto estava na escola, enquanto fazia o dever de casa ou brincava com meus amigos. Eu estava dedicado a ter um brinco estiloso, todos meus amigos tinham, e eles eram super estilosos.
O único problema de falar dos cuidados com uma criança, é que ela não faz a menor ideia do que o funcionário disse. Ela não guarda esse tipo de informações e acha que pode fazer qualquer coisa estranha. Claro que eu não entendi que era para rodar o brinco, eu não era esperto o suficiente para isso.
Ao sair da farmácia, comecei a caminhar na rua com meu pai e, de quando em quando, eu dava voltas em torno de mim mesmo. Meu pai ficou sem entender. Mas eu caminhava, girava em torno do meu próprio eixo, e continuava caminhando. Meu pai deveria pensar que era coisa de criança brincando sozinha e viajando na maionese. Foi um comportamento peculiar.
Eu girava em torno do meu próprio corpo várias vezes ao dia, me dediquei profundamente à esta tarefa. E o resultado foi nada surpreendente. O brinco grudou na minha orelha, pois a cicatrização ocorreu e colou o objeto lá. Foi horrível, estava muito preso e ninguém conseguia removê-lo. Por sorte, uma vez em um clube, minha tia que tinha a unha muito grande, conseguiu agarrar o objeto e usar toda sua força e jeito para remover o brinco da minha orelha. Rendeu uma ótima foto minha criança, mostrando a orelha com a língua para fora. Pena que a foto é distante e estes detalhes não são óbvios por quem não conhece a história.
O brinco não deve ter durado um ano sequer, eu nunca tive a argolinha com crucifixo pendurado e até hoje não sei jogar futebol. Ironia do destino ou autosabotagem?
Nunca saberemos. Mas ficou a lição de que crianças entendem o que querem, e eu nunca questionei o fato do giro corporal em volta do próprio eixo auxiliar na cicatrização de um brinco na orelha.
Vai entender…

[Serigrafia] Fui no mangue…

Chico Science e Nação Zumbi fizeram músicas que me marcaram muito. Me lembro daquele jovem pós adolescência, entrando na fase adulta e querendo descobrir o que o mundo tinha para oferecer. Me lembro que eu escutava música punk e rap enquanto voltava da escola caminhando, walkman no talo enquanto eu cantarolava as músicas. Um amigo, na época também punk, me disse que ia rolar um show de graça dum grupo de rock e maracatu no Parque Municipal. Eu, com todo meu preconceito musical, rejeitei o convite mas fiquei curioso em saber o que era maracatu, e o que isso tinha a ver com rock.
Com todas minhas habilidades de hacker naquela época, baixei algumas músicas no Soulseek (talvez Napster, Imesh, ou sei lá qual aplicativo eu usava) e me apaixonei profundamente. Cada canção que eu escutava eram aulas de musicalidade, ritmos, batidas, e eu me tornava um ser bastante curioso a cada letra que eu cantava.
Me tornei uma pessoa que se interessava mais ainda por música, fui buscar o que foi a Revolta Praiera, porque os computadores faziam arte, porque a cidade não gosta de seus construtores, fui buscar o que era um mangue, o que era Maracatu, quem foi Sandino, Zapata, Zumbi ou Antônio Conselheiro, Lampião e quem foram TODOS os Panteras Negras. Um mundo novo se abriu para mim. Outros grupos, movimentos, ritmos e estilos chegaram até mim, e me fizeram compreender que há algo além do punk
Conheci o grupo quando Chico Science já havia partido, e eu peguei só o que ele deixou de legado.

Escambo Gráfico

Para esta quarta edição do Escambo Gráfico, decidi prestar minha pequena homenagem a este grupo que me marcou tanto, me fez compreender várias coisas novas. Fiquei matutando ideias de como poderia homenagear alguma letra, e pensei logo em Manguetown. Não porque eu gosto que as coisas sejam assim, mas Manguetown me lembra um pouco de Homens e Caranguejos, obra de Josué de Castro, que eu li e me debrucei sobre cada detalhe, quando ainda achava que estudar Geografia seria meu futuro, rs.
Na obra, eu decidi ir pela literalidade da cena final da letra da música: “Fui no mangue catar lixo, pegar caranguejo e conversar com urubu…”. Talvez numa tentativa de trazer o quão importante foi, para mim, conhecer a banda e suas músicas.
O verde do fundo, mais pálido, coloca o mangue como um grande cenário. No primeiro plano um sujeito dentro do mangue (A lama chega até o meio da canela…) carrega um saco de lixo em uma mão, e um caranguejo em outra. Um urubu observa tudo (Urubuservando a situação…), esperando o sujeito verbalizar algo. Tudo isso em um vermelho mais forte. Esses dois trechos em destaque compõem outra música do disco chamada “Maracatu de tiro certeiro”. Foram referências para pensar em como seria o desenho e a composição desta gravura.
Trabalhar com cores complementares é mais seguro para quem é daltônico, e eu tive ajuda das amizades pra decidir a tonalidade do verde. Me sinto mais seguro quando consulto outras pessoas sobre quais cores utilizar.
Esse foi o resultado:

Tamanho aproximado: 21×14,8 cm – Papel Marcatto 80g – Edição de 36 cópias

Imaginokupa #2

Armazém Fandango

No encontro de esquina entre as ruas Donati e Kanno Suga há um imóvel que serviu de abrigo, durante décadas, a um antigo armazém gerenciado por duas gerações da família Maldonado. O armazém, bem tradicional, vendia peças de frigorífico, charcutaria, laticínios e embutidos industrializados para os habitantes do bairro Jardim. Com o falecimento precoce do patriarca da segunda geração, os jovens herdeiros do negócio desistiram de continuar no segmento devido ao penoso trabalho de abastecimento, venda e logística que só o Sr. Maldonado conhecia. Outra questão a se considerar foi o fato de que muitos fornecedores, desconfiados da capacidade de gerência dos jovens, passaram a não mais seguir o modelo de consignação, o que gerou dívidas para a família.
Após a desistência de seguir com o negócio ativo, o imóvel ficou abandonado por 17 anos e se tornou alvo de disputas judiciais intrafamiliares que não chegaram a acordo algum sobre a utilização ou venda do antigo armazém. Todos os móveis e equipamentos foram abandonados dentro do espaço, e as portas e janelas foram lacradas para evitar invasões.
Um grupo de jovens moradores da região que costumavam se reunir na porta para ouvir música punk, e que se motivavam pelas escutas das histórias do antigo armazém contadas por seus familiares, certa vez decidiram escalar o imóvel por fora para tentar acessar a parte interna da casa. A construção possui dois pavimentos, sendo que o de baixo tem características de loja, com janelas grandes de vidro, toldos externos e um salão amplo; e o de cima eram cômodos menores, que serviam de armazenamento e preparo dos produtos que eram vendidos no armazém.
Foi através de um cano que desce a partir da calha que os jovens conseguiram acesso à uma pequena varanda situada no segundo andar, onde o buraco no vidro quebrado da janela adentrava logo na despensa. Os jovens ficaram impressionados com a quantidade de alimentos, equipamentos e suprimentos que foram abandonados no local, e se perguntavam como tudo isso poderia funcionar.
Foi através de vídeos na Internet que surgiu a curiosidade sobre o fazer manual, e de aprender a manusear os vários equipamentos e utensílios domésticos que já estavam em desuso por obsolescência. O grupo de jovens se reuniu e decidiram ocupar o armazém para que ele pudesse voltar a funcionar e a fornecer alimentos para a comunidade.
O primeiro passo foi fazer um mutirão de limpeza e descarte dos suprimentos com validade vencida. Foram descartados mais de 250 kg de enlatados e embutidos a vácuo, além de ter sido necessário 27 dias de retirada de entulhos, poeira e lixo que se acumularam durante anos. A energia foi ligada através de uma conexão direta com o poste de energia que se erguia logo em frente ao imóvel. A água canalizada passou a ser fornecida através do rompimento do cadeado que trancava o registro, método antigo praticado pela empresa que gere o abastecimento de água, e foi feito o desvio de um encanamento entupido para que a água pudesse voltar a circular no imóvel. Os equipamentos de corte, preparo e empacotamento passaram por processos um pouco mais trabalhosos: tiveram que ter algumas de suas partes desmontadas e substituídas por peças novas similares, além da limpeza e lubrificação dos mecanismos de funcionamento. A maior parte desta manutenção foi feita lendo manuais antigos e assistindo a vídeos, pois aprender a manusear e a manter o maquinário havia se tornado um interesse coletivo daqueles jovens.
Após a reabertura das portas e janelas, alguns eventos começaram a ser realizados no local como forma de angariar recursos para a manutenção do espaço. Primeiro ocorreu um grande encontro de pessoas que colam adesivos nas ruas. Vários adesivos foram colados nos postes, e a arrecadação com venda de cervejas ajudou a recompor os vidros das janelas. Um DJ local manteve o som tocado em volumes aceitáveis durante todo o dia de evento para convidar pessoas a conhecerem o espaço. Uma segunda atividade, que envolveu músicos espontâneos de qualquer ritmo e instrumento, durou 5 dias ininterruptos e movimentou muitas pessoas que transitavam pelo local e doavam moedinhas para o grupo que tocava sons improvisados, no vai e vem de músicos e de instrumentos. Neste mesmo evento, as paredes externas receberam pinturas novas, além de alguns grafites nos toldos para disfarçar o desbotamento das lonas. Esse evento de improvisação musical ficou conhecido como Fandango Louco, e se tornou o principal evento de arrecadação financeira do local antes do armazém voltar a funcionar.
Com boa parte dos equipamentos em pleno funcionamento, os jovens punks iniciaram uma difícil tarefa de mobilizar a comunidade local para doar alimentos e suprimentos para a nova ocupação. Porém, a iniciativa não foi bem sucedida, pois os olhares de desconfiança da comunidade em relação aos jovens prevalecia em relação à verdadeira intenção dos mesmos.
O jogo virou quando o tio de um dos jovens que pesquisava de forma autodidata fermentação natural e culturas microbiológicas propôs o início dos testes no imóvel, pois ele apresentava condições ideais de manutenção e preparo. Foi através deste mesmo tio que os jovens conseguiram contato com hortas e estufas comunitárias, e o antigo armazém se tornou um ponto de pesquisa, compartilhamento de técnicas e um local para escoar a produção dos vegetais e hortaliças plantados na região.
A iniciativa foi tão bem aceita, que outras pesquisas surgiram no local para produzir os mais diversos alimentos preparados com vegetais, em consonância com as culturas e com os fermentados que já estavam em atividade no local. Daí surgiram tofus, kimchis, kombuchas, “linguiças” vegetais, hambúrgueres vegetais, queijos/leites vegetais, pães, chucrutes, vinagres, cervejas, vinhos, cogumelos, tempehs, missos e uma variada gama de temperos.
A atividade do armazém ocupado chamou atenção da comunidade imigrante oriental, que abraçou a causa e passou a ajudar os jovens nas criações, preparos e vendas dos diferentes produtos.
Após alguns anos de atividade, a ocupação continua existindo, ainda sem o conhecimento da família que abandonou o imóvel. Atualmente, o local é fonte de renda para os jovens que ocuparam e decidiram restaurar o imóvel, além de ser ponto de encontro para atividades musicais espontâneas ao ar livre, onde tudo começou. O bairro Jardim abraçou o antigo armazém, pois é o único que ainda restou no bairro, já dominado por grandes cadeias de supermercados. O nome da ocupação “Armazém Fandango” é uma homenagem à esta atividade musical que trouxe recursos e pessoas para conhecerem o imóvel, e que apostaram forte na potencialidade do espaço em prover alimentos de qualidade, compartilhamento de conhecimentos e técnicas, e de ser um ponto de resistência contra as corporações alimentícias que dominam a região.



Lapsos de Tempo #10

Movimento

-Você diz estar cansado pra sair com a gente, mas vai embora a pé até a sua casa a essa hora da noite? Meio contraditório isso, não? Ou você está cansado, ou não está…!

-O cansaço não é algo que me impeça de caminhar. Desde jovem eu aprendi que minhas pernas poderiam me levar onde quisesse nesta cidade. Quando estava na quinta ou sexta série, passei a ir e voltar da escola caminhando, atravessando uns 4 ou 5 bairros. Comecei a fazer isso para economizar vale-transporte e poder gastar com alguma outra coisa. A cidade ficou pequena para mim, pois tomei gosto pelas calçadas, pelas ruas e por esta vida que surge e se movimenta em meio ao concreto cinza e rígido. Passei a observar cada elemento que surgia no meu trajeto. Pixações novas e antigas, portas, portões, janelas, lojas, graffitis, pequenos fragmentos de qualquer coisa que eu achava no chão. Tudo era motivo preu seguir me movimentando e observando. Quando eu estava no ensino médio arrumei um trabalho de office-boy. Minha tarefa consistia em colocar vários envelopes com boletos na minha mochila jeans cheia de patches punks e entregar para clientes da empresa em vários pontos da cidade. Eu criava uma rota analisando o mapa da cidade que vinha nas primeiras páginas do catálogo telefônico, decorava cada esquina que eu deveria virar, e para onde seguir depois de entregar algum envelope. De noite, eu ia para o colégio escutando walkman enquanto observava cada elemento que me chamava atenção no caminho. Não, eu nunca fui um bom estudante. Tive minha educação básica completamente negligenciada, mas caminhar sempre foi algo que me fazia aprender sobre o espaço em que eu me situava. Eu era um observador de tudo que acontecia no trajeto, de qualquer coisa que fugisse do padrão e atravessasse meu olhar. Você começa a perceber a rotina de cada pessoa que cruza o seu caminho, e acha estranho se em algum dia a pessoa não passou por ali, naquela hora. Você passa a enxergar as atividades das pessoas, você sabe em qual velocidade elas caminham, e começa a se perguntar para onde estão indo. Você sabe quando um outdoor foi trocado, quando a lixeira é esvaziada ou quando a rua será varrida. Você conhece os buracos e imperfeições, e comemora quando a passagem de pedestre foi consertada. Você olha o número das casas, percebe sua diversidade estética, e acha ruim quando a placa de número fica em algum escondido. Você presencia os locais de dormitório das pessoas em situação de rua, como arrumam aquele espaço público em um pequeno local aconchegante, e se questiona o que pode ter acontecido quando elas não mais estão ali… Minha vida sempre foi movimentada pelo ato de caminhar. Vieram outros trabalhos, cursinhos pré-vestibular, viagens, eventos punks em diferentes locais da cidade e da região metropolitana. Lá estava eu indo a pé, sozinho ou acompanhado. Caminhar não me traz cansaço como um trabalho repetitivo e exaustivo, ou uma roda de conversa no bar onde dez pessoas gritam para se fazerem ouvidas em meio à tanto estímulo sonoro, visual e alcoólico. Talvez algum dia você me compreenda. Caminhar, para mim, não é uma atividade física, não é algo que me desgasta, não é algo que eu faça apenas quando estou descansado, não é algo que eu faça para emagrecer, ser saudável ou manter a forma. Caminhar é um modo de locomoção ativa, que faz com que eu não dependa de recursos financeiros, aplicativos, tecnologias digitais. Caminhar é vivenciar outras formas de sentir a pulsão da cidade, de descobrir trajetos e curiosidades, de observar elementos que compõem o espaço, de refletir sobre o quanto a cidade odeia seus habitantes, de deixar que algo diferente te faça escapar da normalidade e da apatia. Caminhar, para mim, é descansar enquanto consigo organizar meus pensamentos durante o trajeto. Quando eu caminho, eu sinto que eu empurro o mundo para trás enquanto me lanço adiante em cada passada. É isso que me move. Talvez você nunca entenda…

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW


Boletim de Ocorrência

Fui roubado, furtado, expropriado, larapiado, escamoteado, surrupiado, usurpado e assaltado das piores formas possíveis. Levaram meus desejos, meus sonhos, minhas vontades, minha disposição, meu apetite, meus anseios, meus interesses, minhas aspirações, ambições, pretensões e intenções. Já não me resta nada além de desespero, frustração, rancor, mágoas, decepções, desencantos, desilusões, desgostos, tristezas, fracassos, derrotas e descontentamentos. Queria muito saber se vocês podem me ajudar, me auxiliar, me assistir, me socorrer, acolher, amparar e contribuir para resolver este meu grande, gigante, imenso, enorme, colossal, extenso, vasto, profundo e complexo problema, adversidade, dificuldade, sufoco, imbróglio, revés, transtornante contratempo trágico.
Como farei para retomar minha vida nesta imensidão louca e insana que é viver sem o mínimo possível? Eu quero de volta minha esperança.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW

Lapsos de Tempo #9

Corrente

Estou seguindo a corrente de ar, direciono os movimentos de corpo para que ela me mantenha no caminho certo. Primeiro, mantenho uma postura firme, mirando pra frente, sem ter um destino certo. Adoto uma forma mais aerodinâmica para subir a velocidade, cortando a resistência do vento. Os ombros estão encaixados para que as asas não fiquem livres, mas elas conseguem girar levemente para acompanhar o impacto invisível da corrente de ar. Assim eu não caio. Depois, sinto cada centímetro do meu corpo receber sua porção de vento que impulsiona e dá velocidade. Não falta destreza nesse pequeno corpo que sobrevoa as vossas cabeças.
Daqui de cima eu vejo tudo, observo tudo. Essas construções novas que surgem em qualquer lugar atrapalham o trajeto. Surgem novas todos os dias. Eles fazem com que os ventos mudem de direção, ou de sentido. Seguimos um pouco errantes neste trajeto sem rumo.
Aqui em cima a vida anda complicada. Existe uma certa competição por espaço entre esse tanto de coisa. São construções, aviões, helicópteros, torres, fios, papagaios e outras aves querendo se guiar pela corrente. Difícil fugir desta lógica quando os trajetos são planejados a curto prazo. Todo mundo aqui tem pressa, o que torna tudo mais complexo. Na corrente não há lugar para todo mundo, mas há outras correntes que guiam até outros lugares. Nunca entendi porque todos vão para os mesmos lugares sempre. A competição é por tempo também.
Sigo firme no meu caminho, desvio de fios com rolinhas, viro a direita para pegar a brisa vespertina que segue via oeste. Aqui é mais escuro, mas é um trajeto que refresca. Mudo para o patamar de cima, desvio de um poste de luz que piscava como filme de terror, a pressão aumenta, e minhas asas não aguentarão muito mais tempo. Volto para o patamar de baixo aproveitando o vácuo deixado por um companheiro, isso me faz descansar. Não sei para onde ele vai, mas preciso aproveitar o máximo possível a chance do descanso. Adiante me desvinculo do companheiro e sigo à direita, próximo de um coqueiro. Tem um tucano que vive ali em cima, hoje ele não estava. Lá embaixo, uma subida íngreme. Aqui, a corrente de ar me leva para cima sem muito esforço.
No horizonte, vejo que o sol começa a baixar. Eu acelero com um voo rasante na diagonal para baixo, pego impulso e subo o viaduto embalado. Subo alguns degraus de ar e alcanço o beiral da Mocadinha. Aqui é o melhor ponto para ver o sol se pôr.
Tem coisas que valem a pena o esforço.

La Idea, 2022 – Lomo Action Sampler, Fujifilm Superia 400

Referências

– Frederico, ultimamente tenho percebido que você está meio para baixo. O que aconteceu?
– Querida, há muitos anos atrás eu achei que minha ideia algum dia seria um sucesso. Mas até hoje eu só coleciono fracassos. Estou atolado em dívidas, o negócio já não é tão mais próspero, e nem o trocadilho com a animação faz mais sentido. Eu investi pesado em marketing, na apresentação de um bom produto. Contratei identidade visual e até adquiri parte dos direitos de imagem junto à empresa gringa. Contratei os melhores funcionários, pagando um salário mais que justo, pensando que o negócio iria prosperar, e hoje, nesta situação em que me encontro, não tenho mais perspectivas. Eu não consigo entender, de verdade, porque o mundo compreendeu que estamos mais próximos dos Jetsons do que dos Flinstones. Nós seguimos as mesmas etiquetas da idade da pedra, e não alcançamos o tráfego aéreo ainda. O mundo que se tecnologizou só o fez por partes. Seguimos tão antiquados e quadrados quanto os nossos antepassados. Apenas substituímos a rocha bruta por uma mistura de metais leves e resistentes, mas ainda assim deixando o rastro de destruição causado pela extração. O solo deixou de ser fértil porque não plantamos mais nada por pura preguiça. Preferimos comer embutidos e enlatados, que são re-fritos em óleos cancerígenos enquanto assistimos a qualquer besteira na televisão. O mundo instala esteiras rolantes nas calçadas das ruas, enquanto obriga alguém a pagar por uma academia para caminhar na esteira. É quase como ter um carro chique, importado, e usar os pés descalços para dar algum tipo de tração. A ilusão do moderno, do tecnológico, do futuro não passa de puros devaneios. A pedra, esse elemento revolucionário que deu origem aos mais diversos momentos da história, foi esquecida. Ela foi lançada contra tanques durante as Intifadas, serviu para erguer pirâmides e templos, suportou durante milênios vários tipos de inscrições e incisões, e reza a lenda que foi usada de suporte para carregar os dez mandamentos. Nada disso mais importa hoje…
– E o que você vai fazer agora?
– Bom, andei pensando e cheguei em algumas conclusões: Nada é para sempre; pedras resistem ao tempo mas não resistem ao humano; Flinstones e Jetsons são animações irrelevantes.
– E daí?
– E daí que me preocupa com qual animação iremos pensar sobre o passado e sobre futuro e em quanto tempo ela ficará obsoleta.
– (???)
– Não te preocupa essas questões?
– Não. O que me preocupa são todas as indenizações que você terá que pagar para seus funcionários, além das contas atrasadas e empréstimos. Você não sabe onde recorrer?
– Sim, vou assistir Galinha Pintadinha.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

[Linoleogravura] Carolina Maria de Jesus – Desafiando a ordem social vigente

Certo dia eu estava escutando o Podcast História Preta, especificamente a temporada sobre a Carolina Maria de Jesus, e acabei sentindo um certo incômodo. Não é um incômodo ruim, que te paralisa, mas algo que me deixou com uma enorme vontade de produzir e ampliar um pouco a percepção sobre o tema.
Escutar podcasts é algo recente na minha vida, começou em 2020 durante a pandemia por indicação das amizades. No meu atelier, trabalhando/estudando/tentando me manter vivo, ficava horas e horas escutando vários episódios de diversos canais. Eu sempre me imaginava surtando qualquer dia desses com tanta informação sem saber o que fazer com isso tudo.
Foi escutando o episódio 2 – Diário de Bitita, da temporada sobre a Carolina publicada no início de 2023 no canal supracitado, que uma observação proferida por Thiago André (pesquisador e narrador do Podcast) balançou um pouco meus neurônios da criatividade e da reflexão.
Próximo do minuto 26 do episódio é narrado o seguinte:

“Todos os dias ela se sentava na porta de casa, que dava acesso à rua, para ler o tal Dicionário Prosódico, que no contexto daquela cidade, daquele Brasil, aquela era uma cena incomum, quase pitoresca. Uma mulher negra a toa, lendo um livro sobre o sol da tarde. Naquela época, o artigo 399 da lei penal da República, tipificava a vadiagem como crime. A pessoa, geralmente negra, que fosse pega e não pudesse comprovar ocupação ou trabalho, podia pegar até 30 dias de prisão. Carolina ao sentar todos os dias na porta de casa por horas, com seu corpo negro a vista de todos, na rua, sob o sol, desafiava a ordem social vigente, pelo simples ato de ler um livro em público. E não só isso. Por também estar a toa.”

Transcrição feita por mim, pode ser que uma palavra ou outra esteja errada, rs.

Eu sempre fico impressionado com a capacidade que algumas passagens possuem de nos intrigar a ponto de nos dar vontade de produzir alguma coisa. A partir deste trecho, fiquei pensando no conceito de “crime”, e como isso toma uma proporção muito injusta a depender do contexto. Eu cresci desenvolvendo a ideia de “crime” como algo horrível, passível de punição. Algo que prejudicou outras pessoas, o coletivo, a sociedade. Algo que, de tão ruim, deveria ser julgado por pessoas especialistas em crimes.
Mal eu sabia que a noção de “crime” pensada e praticada por especialistas é apenas uma ferramenta de controle das massas, de manutenção para que o sistema liberal burguês siga forte e atuante. As repressões, as punições, julgamentos, vigilâncias, encarceramentos, despejos, violências diversas, tudo isso são ferramentas de controle para manter a ordem burguesa.
Tudo que é lei é adaptado para fornecer mais poder ou menos poder para determinado grupo. Não se trata do que é justo, mas sim de uma negociação que pretende equilibrar a manutenção dos privilégios de alguns e a fúria exacerbada de outros. A lei é a balança viciada que finda este “equilíbrio”.
Uma pessoa sentada na porta de casa lendo um livro é um perigo para quem?

Assumindo discursos

Essas questões entraram muito em foco durante meu processo de reflexão. Bastava alguém ter a ousadia máxima de ler um livro na porta de casa, para encarar 30 dias de cela. Não existe tempo para lazer, diversão, ócio. Se você fosse pobre e não pudesse comprovar um trabalho, você se encaixaria em um perfil criminoso. A situação chega a ser cômica de tão absurda que é.
Fiquei pensando muito em várias situações bizarras que outrora foram permitidas, mas que acabaram caindo ao serem pesadas na balança da manutenção dos privilégios. Uma delas é a escravidão. Só de pensar que poucos anos nos separam de um lugar onde comprar e vender pessoas era permitido, torturar era permitido, ser proprietário de pessoas era permitido, me traz uma certa agonia. E tudo isso fazia parte de uma gama de privilégios brancos, elitistas, coloniais, burgueses. Era permitido por lei e os agentes do Estado atuavam para fazer cumprir.
Talvez essa prática oficialmente deixou de existir porque a balança pesava demais para o outro lado, e valia mais a pena abrir mão das propriedades humanas para manter o sistema fortalecido.
Quem pesa na balança ao lado dos revoltosos contra o sistema não pode descansar. Deixar de lutar significa assumir derrotas.
Carolina Maria de Jesus é herdeira de todo esse processo. Negra, pobre e periférica, ousou pesar a balança contra a manutenção dos privilégios e sentiu na pele a injustiça e a repressão.
A tipificação do que é “crime” normaliza as práticas dos de cima, enquanto brutaliza as dos de baixo. Qual o propósito por trás disto?

Desenvolvendo a gravura

O ponto de partida para planejar esta gravura partiu do trecho transcrito acima: “Desafiava a ordem social vigente…”. Porque ler um livro na rua configurava uma prática de ousadia? Foi a partir desta pequena reflexão que comecei a fazer os esboços. Pensei em um formato de paisagem, com a Carolina ao centro, sentada numa escadinha junto com uma pilha de livros. A frase, adaptada pra gravura, ficaria no céu, como se fosse um fundo, algo que está latente no ar. De um lado a vida: casas, comunidades, morros, roupas, árvores, trabalho, ócio e espontaneidade. Passagens onde circulam rebeldias e ousadias. Do outro, uma barreira de espadas de São Jorge protegem a escritora da pequena viatura que vem para buscá-la. Lugar rígido, duro, acrítico. A ambiguidade dos espaços conflui na figura central, gigante. Sim, ela é muito maior que o braço armado da lei.

O material escolhido para fazer a gravação foi a matriz emborrachada conhecida aqui como Microduro, que simula algo como o linóleo mas que é mais barato e acessível. O esboço foi feito digitalmente, espelhado, impresso em impressora de toner, e o decalque na matriz foi feito com thinner. Alguns reforços com marcadores permanentes foram necessários para trazer alguns detalhes a tona. A gravação com as goivas começaram logo.

Após a conclusão da gravação, foi feita uma impressão de teste para compreender melhor como estava o resultado. Aqui eu utilizei tinta da cor sépia, pois daria um bom contraste para compreender bem as linhas, volumes e detalhes presentes na imagem.
A partir daqui, a matriz passou por mais algumas incisões, corrigindo algumas questões de profundidade, e passou por cortes para separar o primeiro plano do fundo. Como a impressão iria receber duas cores, dividir a matriz facilitou muito o processo de impressão, imprimindo as duas cores de uma vez. Também foi medido o espaço de respiro que teria o papel, e uma borda do tamanho adequado foi mantida.

Ainda no esboço virtual, eu tinha feito um teste de cores para compreender uma boa combinação, algo que fosse agradável ao olhar, que chamasse atenção. No final, optei pela combinação de vermelho e de laranja. Cores quentes, ousadas, que não competem por espaço nos nossos olhares. Cores que focavam tudo o que nos é permitido enxergar.
Foram utilizadas tintas a base de água, misturadas com medium extensor (para que a tinta pudesse ser esticada) e medium retardador (para aumentar o tempo de secagem) e assim poder imprimir com menos preocupações.
A impressão foi feita com baren e colher de pau em papel Marcatto 80g. O tamanho aproximado é de 42 x 21 cm.

A gravura pode ser adquirida na loja virtual ou clicando aqui.

Um Reels com o processo de impressão pode ser visto no link abaixo, na minha conta de Instagram.

IMAGINOKUPA #1

Comida Popular

“Comida Popular” é como ficou conhecido o imóvel ocupado no beco 77 do bairro periférico Libertador. É uma pequena casa de dois pavimentos transformada em um restaurante com várias peculiaridades.
O imóvel foi abandonado nos anos 70, após o boom econômico da região, o que fez com que várias famílias migrassem para casas maiores ou mais próximas do Centro da cidade. Quase 35 anos depois, um grupo de jovens aventureiros acessaram o imóvel com o intuito de pintar grafittis nas paredes para servir de cenário para um videoclipe, mas se depararam com as paredes completamente tomadas por vegetação, impedindo a prática com as latas de spray. Naquele momento o clima era de frustração e aquelxs jovens se sentaram no segundo andar para traçar estratégias de como transformar o local em um bom cenário para a música de protesto que eles cantavam.
No decorrer das conversas, xs jovens estranharam o fato de haver tamanha vegetação em um local abandonado há anos, e começaram a investigar as plantas que cresciam ali. Algumas foram reconhecidas rapidamente, como a Ora-pro-nobis que subia desgovernada pelas pilastras externas. Outras, como o Peixinho, foram reconhecidas com certa dificuldade por alguns deles que já haviam provado a iguaria.
Acontece que a notícia se espalhou em diversos grupos, e foi montada uma força-tarefa para catalogar as plantas existentes naquele local. No grupo que se formou haviam biólogxs, cozinheirxs, nutricionistas, artistas de diversas áreas, eletricistas e pessoas desocupadas, que não se definiam por uma área de trabalho específica. Após várias reuniões no local, e com o catálogo de plantas quase completo, foi descoberto um sistema de captação de água que mantinha úmida todas as plantas, além de uma certa “fauna” que manteve a reprodução e a adubação dos pequenos vasos por todo esse tempo. As grandes portas de vidro auxiliavam a entrada da luz. Era um verdadeiro ecossistema auto-gerido que havia sido criado pela própria natureza no decorrer dos anos.
O grupo de pessoas, inspirado pela descoberta, decidiu por transformar o local em um restaurante público. A ideia era servir almoço a preços irrisórios ou até de forma gratuita. Formou-se Comitês onde o trabalho do dia era dividido, e havia rotatividade de pessoas entre os Comitês para que todxs pudessem aprender e/ou ensinar novas habilidades, seja na cozinha, no plantio ou na manutenção do local.
79% das refeições servidas na “Comida Popular” têm sua origem na própria ocupação, sendo o restante oriundo de parcerias com outros locais que fornecem arroz, fubá e azeite, por exemplo. O Peixinho frito no fubá é um dos pratos favoritos das pessoas que frequentam o local. O prato vem com 3 folhas grandes, arroz, grão de bico, tomate, alface e ervilha.
O local é mantido apenas com os ganhos da hora do almoço, e isso ajuda a financiar as pesquisas sobre a flora local, também a manutenção e a compra de alguns suprimentos de limpeza e higiene. A ocupação tem sido um ponto de referência na periferia da cidade, e foi acolhido pela comunidade local como um dos espaços mais importante da região. Foi, inclusive, o apoio comunitário que impediu o despejo do grupo gestor e da atividade de restaurante pelo menos em 5 ocasiões, onde os antigos donos do imóvel exigiam, entre outras coisas, que um valor de aluguel fosse pago.
“Comida Popular” segue firme com as atividades, atraindo trabalhadorxs, estudantes e curiosos de diversas regiões que fitam compreender como funciona a ocupação. Atualmente, a Força-Tarefa conta com aproximadamente 17 pessoas que se revezam voluntariamente entre os Comitês de Limpeza e Higiene; de Plantio e Colheita; de Elétrica e de Água; de Preparo e Manuseio e o de Captação e Propaganda. Este último Comitê produz cartilhas sobre plantio, preparo e alimentação com Plantas Alimentícias Não-Convencionais (PANC’s), Nutrição Vegana, formas de gestão coletiva e informes sobre a ampliação das redes de influência formadas juntamente à outros Coletivos e Ocupações.
O beco 77 do bairro Libertador nunca mais foi o mesmo depois da descoberta dos jovens.

Lapsos de Tempo #8

Diário

Hoje acordei nesse lugar estranho. Parece uma caixa com uma porta. Tem outros como eu em outras caixas parecidas. Não vejo ninguém com a cara boa dentro destas caixas. Tem algo ligado na minha veia, parece que estão me injetando um líquido transparente. Sinto uma dor abdominal tremenda, parece que falta algo. Não tenho muitas lembranças de como cheguei aqui, ou o que aconteceu nesse tempo. Tem algo enfiado no meu pescoço que me impede ver o que fizeram comigo, mas sinto uma faixa apertando o abdômen. Acho que estou sem forças…
***
Vejo o casal que cuida de mim na sala de espera desse lugar horrível. Por mais que eu queira sair correndo em direção à eles, sinto muitas dores, acho que estou meio zonzo. Sinto uma fraqueza no corpo. Eles me pegam no colo e me colocam no carro. No trajeto, olho a paisagem, ainda muito desconfiado do que pode ter acontecido comigo.
***
Já fazem alguns dias que sigo a mesma rotina. Me obrigam a tomar vários remédios com hora marcada. Eles são ruins, amargos, e eu sempre recuso esse tipo de tratamento. Essas pessoas que cuidam de mim me colocam deitado de barriga para cima no sofá. Eles limpam o corte fechado com pontos que tem na minha barriga. É um corte grande, e eu sinto um nervoso ao sentir esse produto de limpeza que passam. Nem vou dizer da coceira que dá quando borrifam esse trem marrom no ferimento. Eu sigo sem forças para várias tarefas, mas agora o colchão está direto no chão, eu não preciso me esforçar para dormir no quentinho.
***
Hoje tiraram meus pontos. Foi um baita dum alívio. Não preciso mais usar aquele aparato no pescoço que me impede de fazer tudo. Talvez eu esteja melhor.
***
Toda semana estou frequentando esse lugar, que parece o das caixas, mas que é diferente. As pessoas se parecem, mas a disposição de tudo é diferente. Entro numa sala, sempre a mesma sala quente, e fico sentado nessa mesa de alumínio. Minha pata é raspada com máquina, colocam uma agulha enfiada na minha veia ligada à esse líquido transparente. Injetam algo nessa mangueirinha e sinto algo queimando se misturando ao meu sangue. É bem desagradável. Toda semana é isso. Ao final, recebo umas agulhadas com medicamentos debaixo da pele nas costas, costuma ser bem dolorido. Eu ainda não sei o que aconteceu comigo.
***
Já tem um tempo que não preciso mais ser medicado, já não me sinto mais fraco, minha vida voltou ao normal. Consigo correr, pular, latir e brincar sem sentir dores. Eu engordei alguns quilos, e nem tenho mais a aparência raquítica. Todo dia, antes de dormir, estão me dando um negócio com gosto de peixe, dizem que eu precisarei tomar pra sempre. É gostoso, faço questão de lembrá-los disso antes de deitar.
***
Ultimamente tenho tido dificuldades para urinar. Eu faço bastante força, e costuma sair sangue. Eu não sei o que fazer para que as pessoas percebam essa dificuldade. Mas acho que da última vez eu urinei um pouco de sangue. Acho que eles viram o meu esforço para que saísse isso. Talvez eles me levem ao médico, sei lá.
***
Que dor de cabeça horrível, odeio acordar assim. Nem acredito que estou dentro da caixa com portas de novo. Os rostos nas caixas são outros, não reconheço ninguém. Estou ligado nesse aparelho que enfia líquido na minha veia de novo. Esse troço desengonçado no meu pescoço voltou. Ainda sinto muitas dores e não consigo me lembrar de como cheguei aqui. Estava fazendo alguns exames, enfiaram umas mangueiras em mim, de repente acordo aqui. Não aguento mais isso.
***
Cheguei em casa bem desanimado. Dói bastante para urinar, parece que tem pontos novamente em mim. As pessoas que cuidam de mim limpam a saída do xixi constantemente, talvez os pontos estejam ali. Retomaram com a rotina destes remédios de sabor horrível, são muitos. Me faltam forças para reagir…
***
É estranho mijar por esse orifício que abriram em mim. Eu não sei porque fizeram isso, mas imagino que deva ser pela dor que eu sentia quando tentava fazer xixi. Agora não dói, mas ainda é estranho, talvez seja difícil de acostumar.
***
Fazem alguns meses que me sinto super bem, ativo como nunca. Não me levam na clínica há tempos, não sinto dores. Talvez sejam novos tempos, o sol até brilha mais forte que o normal.
***
Ultimamente tenho me sentido desanimado, o sol está queimando mais que o normal, tenho buscado sombras. As pessoas que cuidam de mim jogam uma bolinha ou um ossinho de corda, mas não sei se tenho muitas energias para interagir agora. Eu olho para esses objetos e fico pensando se vale a pena o esforço. Não vale.
***
Hoje aconteceu algo terrível. Fui tentar fazer cocô e senti algo que não devia escapar pelo ânus. Não era cocô, doía bastante e eu fiquei sem saber o que fazer. Corri para uma das pessoas que cuida de mim e fiz um estardalhaço. Ele me pegou no colo e fomos para a clínica. Lá, me deram uma injeção que eliminou a dor, e enfiaram de volta pra dentro o que não devia ter saído. Fizeram alguns pontos para evitar que saísse de novo. Foi horrível.
***
Os últimos dias foram complicados. O que não deveria sair pelo ânus saiu mais 3 vezes. Em duas delas, foi feito o mesmo procedimento de injeção e retorno pra dentro com o conteúdo. Na última vez, me sedaram. Acordei na caixa com porta, bem zonzo, tonto, desorientado. Sentia a dor abdominal, só que desta vez era diferente. Eu não aguento mais esse lugar.
***
As pessoas que cuidam de mim me buscaram, desta vez eu nem fiz festa, não tinha energias para isso, além de estar de saco cheio desse lugar. Em casa voltou a rotina dos remédios e da limpeza nos pontos. Eu já nem me importava mais com nada. Me sentia muito fraco para qualquer coisa.
***
Fazer cocô é uma atividade muito custosa, me traz muitas dores, e não sai nada. Toda vez que faço força, algo que não deveria sair pelo ânus escapa. Eu não aguento mais isso.
***
Me abriram de novo, não quero mais acordar nesse lugar… O que está acontecendo? Desta vez me deixaram aqui por uns 10 dias, morando nesta caixa com porta. Eu observava os rostos, muito desanimados, desolados, tristes… Não desejo isso para ninguém.
***
Estou em casa, as pessoas que cuidam de mim fazem carinho na minha cabeça. Não sei porque, mas minhas patas traseiras estão dormentes, não consigo levantar. Apenas tenho movimento nas dianteiras e no pescoço. Fico encarando as pessoas para ver se elas estão percebendo isso.
***
Minhas patas dianteiras param de funcionar, estão dormentes, não as sinto. Apenas meu pescoço se mexe. Uma das pessoas me carrega para o quarto e me coloca em um pano macio. Ela fica fazendo cafuné na minha cabeça a noite toda.
***
É de manhã, eu apenas consigo mexer os olhos. É uma sensação horrível, parece que não há nada no corpo que não sejam os olhos. Eu solto um grito de dor involuntário, e começa a faltar ar. Um das pessoas se senta ao meu lado chorando, fazendo carinho em mim e dizendo algo que não entendo. Apenas enxergo parte de toda a situação. Eu fico cada vez mais ofegante, respirando muito fundo, escutando um choro ao lado.
***
O último ar que circulou dentro de mim levou consigo toda minha essência. Já não pertenço mais à este lugar.
Obrigado por tudo,
e nos veremos em breve!

Lapsos de Tempo #7

Em casa

Escuto um barulho que me acorda. Abro os olhos, ainda estou deitado nesse objeto macio. Gosto de dormir nele porque meu corpo se encaixa muito bem e minha cabeça fica apoiada nessa parte lateral. Daqui eu consigo ver esses dois gigantes que roncam muito alto. Um deles se levantou para tomar líquido transparente e acabou trombando em algum objeto de madeira no caminho. Foi esse barulho que deve ter me acordado. Não tá na hora de levantar ainda, aquele aparelho eletrônico ainda não tocou a música horrível. Eu adquiri esse péssimo hábito de não conseguir mais dormir depois que a música horrível toca. Para me vingar, eu subo no quadrado macio que os gigantes dormem e faço questão de raspar minha língua na cara deles. Se eu não posso dormir, eles também não poderão. Raspar a língua na cara também vai fazer com que eles desliguem a música horrível, essa aberração tonal que toca todo dia de manhã…
Sigo deitado, apenas observando a horário que a música horrível vai tocar. A partir daí eu posso seguir com minha rotina. Os gigantes são muito frágeis no bueiro gigante, e eu faço questão de acompanhá-los quando eles estão lá. Eles vão todos os dias no mesmo horário. Não sei como aguentam essa rotina. Não sei como eu aguento essa rotina. Eles também possuem um aparato fino para usar após se levantarem do bueiro gigante, eu ainda não sei para que serve. Gosto apenas de desenrolar ele todo pra tentar entender os porquês da existência disso. Sigo sem saber.
Na cozinha o líquido transparente é colocado num objeto de metal, depois começa a pegar fogo por fora enquanto borbulha por dentro. Enquanto isso vou para a sala aproveitar o sol da manhã. Me disseram que é a melhor vitamina D que existe. Gosto de sentir os raios solares adentrando meus pelos enquanto sinto o cheiro agradável do líquido transparente se tornando líquido preto. Nunca me deram isso para beber, só me dão líquido transparente. Talvez seja uma coisa de gigantes.
Começou a ficar quente demais, me levanto e vou para a sombra. Faço isso enquanto observo os gigantes bebendo líquido preto e comendo algo que eles não me deixam comer. Eles proferem sons em concordância, até parece que se entendem. Um emite um som enquanto o outro não emite som. Às vezes eles emitem esses sons se direcionando a mim, como se eu soubesse do que eles estão proferindo sons.
Ambos saem desse local, fico aqui pensando no que devo fazer em todo esse tempo que ficarei sozinho. Tem vários objetos macios onde posso deitar, mas não sei se quero dormir agora. Tem um buraco no local ao lado, parece que tem algo acontecendo ali. Acho que será um bom passatempo observar dentro do buraco. Fico de saco cheio, deito um pouco em cima de um objeto de madeira, só que ao lado da vegetação. Vou na cozinha ver o que está de fácil acesso e que mate minha fome. Não há nada. Até tento saltar na borda do objeto de madeira, mas não há migalhas desta vez.
Olho pra sala e algo brilha, chama minha atenção. Vou para lá correndo e me deparo com um objeto de plástico no chão. Ele possui algum líquido dentro, mas tem uma coisa de plástico que parece impedir que o líquido saia. Me coloco a missão de retirar esse plástico que impede o líquido de sair. Isso ocupa boa parte do meu tempo sozinho. Meus dentes são fortes, mas acho que tiveram dificuldades com esse objeto. Quando eu consigo remover o plástico, o líquido escorre no chão. Eu não sei o que fazer, como que se limpa uma sujeira? Devo raspar a língua? Os gigantes devem voltar e eu não sei como esconder isso. Deito em cima como se a sujeira fosse um objeto macio. Mas logo me levanto por me sentir incomodado com a sensação do líquido na pele. Tento raspar a língua, mas o gosto não é legal e eu acabo desistindo.
A tensão me deixa imóvel e eu não sei o que fazer. Olho para a sujeira que o líquido fez e a fico encarando, maquinando possibilidades. Adormeço sem ver.
Escuto um barulho na rua e desperto rapidamente. É o barulho do objeto de metal que protege o buraco que entra o equipamento mecânico. Os gigantes estão chegando. Me lembro da sujeira e começo a correr e latir, sem saber o que fazer. Não encontro a sujeira, talvez alguém tenha limpado.
Tô aliviado. Corro para o buraco por onde os gigantes entram no local. Estou feliz, eles não perceberão que fiz sujeira e eu não fico mais sozinho.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X PB 200

Na rua

Escuto alguém me chamar lá fora. Vou correndo para entender melhor o que está acontecendo. Me aproximo da grade e vejo a Pequetita passando pelo lado de lá da rua. Ela anda meio pomposa, empinando o bumbum pro pequeno rabo ficar mais aparente. Mas esse hábito faz com que ela caminhe dando alguns pequenos saltos. Seus pelos são de cor clara, contrasta com a calçada escura. Pequetita me avista e, sem cumprimentar, grita em minha direção que a árvore da rua foi contaminada. No meu tempo de reação eu só consigo perguntar de volta quem foi o autor da contaminação. Ela grita que não sabe, mas foi alguém novo. O perfume que estava na árvore era diferente de qualquer outro lugar da região. Eu agradeço e aproveito o dia claro para me deter no sol por alguns minutos. Logo após a Pequetita, o Caquito passou pela rua. Ele me viu, mas fingiu que eu não estava ali. Prefiro contar sobre a contaminação para quem quer saber, Caquito me esnobou, não gostei. Sigo olhando para a rua, Suzi passa e eu aviso que a árvore está contaminada. Ela me responde, diz que a Pequetita já avisou a ela, mas que ela precisava ir na árvore conferir a nova fragrância. Eu digo que só irei de noite, mas que gostaria de saber as atualizações no decorrer da tarde. Suzi segue caminho e se detém na árvore da rua. Eu fico observando. Ela sente o cheiro e olha para mim, confirmando que é alguém diferente. Isso me deixa mais curioso. Tinoco vem descendo a rua. Ele é mais parrudo, curte subir numas árvores. Já fiquei sabendo que ele até já subiu muro. Da rua, eu acho que ele é o mais ágil. Mas eu o vejo pouco, ele vive um pouco mais distante, mas sempre cumprimenta quando passa por aqui. Uma vez ele disse que me traria um pedaço de osso e deixaria aqui na minha porta, eu agradeci, mas recusei a oferta. Ossos não me fazem bem. Tinoco parou na árvore, trocou algumas palavras incompreensíveis com Suzi, e me olhou. Será que a Suzi falou de mim? Tinoco desceu mais e parou aqui em frente, perguntou o que eu já sabia do caso da árvore. Eu disse que havia uma nova fragrância que contaminou a árvore e que era de alguém desconhecido. Ele me confirmou a informação, disse que eu deveria ser mais enxerido pra coletar informações. Eu disse que tentaria, mas nem sempre dá tempo. Tinoco fingiu que estava caçando lugar para defecar enquanto conversávamos. Depois de um tempo despistando, ele seguiu viagem. Ver ele despistando me deu vontade de mijar. Aqui neste espaço tem plantas, e eu posso liberar o xixi aqui sem perder as atualizações sobre a contaminação da árvore da rua. Fiquei algum tempo olhando para a árvore da rua, o que poderia ter contaminado ela? Preto e Branco estão subindo a rua. Eu acho que eles são irmãos, mas não tenho certeza. Eles são parecidos, exceto pela cor curiosa de seus pelos, um é claro e o outro é escuro. Eu nunca sei quem é quem. Quando os vejo subindo eu só os chamo de Zé. É muito mais fácil e ambos atendem. Eu aviso que a árvore da rua foi contaminada por alguém desconhecido. Eles apenas acenam, não dizem nada de volta. Acho que eles têm medo de gritar muito alto e serem punidos por isso. Pelo menos fiz minha parte em avisar. Eu apoio a cabeça na grade e me concentro na árvore da rua. Quero sabe em primeira mão a origem da fragrância que contaminou a árvore da rua. Mas depois de tanto tempo, não avisto nada de anormal. Pingolino mora em frente à árvore, em breve tá na hora dele sair pra dar uma volta. Talvez ele tenha mais informações sobre o caso. Roger passa antes, avisando que talvez não seja bom verificar o odor, pois se contaminou a árvore, sabe-se lá o que pode fazer com a gente. Margarete diz que é uma fragrância meio doce, estranha, que deixa a gente enjoado. E se todos adoecermos por causa dessa contaminação? Avisto o portão abrindo e Pingolino está dando as caras, finalmente. Ele sai, analisa a árvore, e começa a buscar possíveis ouvintes pro seu caso a solucionar. Ele me avista e vem na minha direção. Ele me diz que viu algo preto sair de um negócio vermelho, cair na árvore da rua e começar a borbulhar. Foi isso que contaminou a árvore. Não foi um desconhecido, porque não foi um de nós. Eu tento ficar mais tranquilo em saber que não tem desconhecidos contaminando a árvore da rua, mas me preocupa esse líquido preto borbulhante e adocicado que contamina tudo…

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação

A passagem de Chiquito

Dia 25 de Julho de 2012 nasce Francisco. Pequeno, leonino, travesso e amável. Rapidamente recebeu vários apelidos que ele correspondia com bastante interesse. Do nome Francisco vieram Chico, Chiquito, Tico, Picles, Picolino, Picochito, Pico, Francis, Francis Bacon, Chiquito Bacana, entre outros… Todos sempre funcionaram muito bem para que ele soubesse que estávamos nos comunicando com ele. Francisco fez parte de uma ninhada de vários irmãos, cujos pais prováveis são Golden e Poodle. Apenas ele não se parecia com Poodle e acabou esquecido no lar adotivo vendo seus irmãos encontrarem suas famílias rapidamente. Francisco não se parecia com algo que chamasse atenção, pelos curtos de cor bege claro, barriga escura cheia de vermes. Uma coisinha apertável e carente, que ficava agitado na presença de outros seres. Sim, ele gostava muito de ter companhias. Quando cresceu ficou parecido com um Golden Retriever, porém com o tamanho de um Poodle. Fofo como Golden, agitado como Poodle (só que sem ser chato).
Foi em 2014 que ele veio viver com a gente no apartamento de área privativa em que morávamos. Chiquito não gostava de subir na cama para dormir, mas sempre tirou seus cochilos ao lado da cama, no chão. Diferentemente do seu comportamento com sofás, poltronas e redes, já que ele sempre subia nestes móveis para apoiar a pata no colo de alguém pedindo carinho. Ele também possuía um hábito curioso de cheirar olhos, era assim que ele conhecia realmente a fundo a pessoa com quem ele estava se relacionando. Ironicamente, ele não gostava que cheirássemos seus olhos.
Chico gostava de fazer suas necessidades sempre em áreas externas, sendo bem metódico com seus lugares favoritos. Exceto quando, por ironia do destino, ele ficava muito tempo sozinho. Nessas ocasiões ele gostava de urinar na quina da parede da sala durante a madrugada, como forma de protesto. Na solidão ele também chegou a destruir dois pares de sapatos.
Nesta época, para que a urina de madrugada parasse, Chico saía às ruas sem coleiras sempre antes de dormir. Ele corria pelas ruas tranquilas do bairro, explorando o espaço citadino de um bairro puramente residencial, sem muita movimentação no turno noturno. Algumas vezes ele, esperto que era ao explorar as ruas, entrava em alguma casa desavisada com portão aberto para conferir se a ração oferecida naquela residência era boa o suficiente para seus amigos do bairro.
Esse hábito da caminhada antes do sono é algo que o acompanhou até 2021, quando tivemos que alterar seus hábitos. Antes disso, Chico gostava muito de ir em praças interagir com outros animais, e sempre foi muito carinhoso com visitas na casa dele, exceto se alguém apresentava medo ou receio em relação à ele, então ele latia para repelir a pessoa de vez. Ele se sentia o maioral com esse tipo de comportamento.
Francis não gostava muito de câmeras, e sempre virava a cara para não aparecer nas lentes. Porém, suas fotografias, apesar disso, sempre ficaram muito boas. Ele saía com expressões faciais muito marcantes, penetradas, constrangidas com a situação.
Chiquito adorava a rua, a observava com quem observa estrelas no céu com uma luneta profissional. Sabia de tudo que acontecia, e fofocava com outros cães que passavam pelo local. Porém ele não era muito fã de gatos e nem de ratos. Foi ele que descobriu uma infestação de ratos que abriu um buraco na parede embaixo do armário da cozinha e ficou latindo para que soubéssemos de onde estavam vindo. Ele também nos avisou quando dois gatos entraram em casa e ficaram presos na área de serviço ou na casinha do gás, pedindo que avisássemos seus donos sobre o que ocorrera.
Francisco gostava muito de carinho e de companhia. Gostava que fizéssemos cafuné em sua cabeça, em seu pescoço, em seu peito, na sua barriga e no seu cóccix, onde ele tinha efeitos secundários que o faziam mexer as pernas involuntariamente. Às vezes ele mesmo empurrava nossas mãos para que soubéssemos onde ele queria carinho. Quando estávamos nos alongando ele sempre aparecia embaixo de nossas mãos aproveitando o momento para receber mais carinho. Ele também achava que qualquer pedaço de pano no chão era um convite para que ele deitasse em cima, fixando espaço, inclusive, sobre pés de chinelos e panos de chão. Chico também gostava de deitar em lugares estranhos nos móveis ou de enfiar a cabeça em algum lugar aleatório como se fosse um tamanduá. Ele adorava acompanhar o cochilo de quem quer que fosse, se deitando ao lado, nas pernas ou nos braços da pessoa para aproveitar aquele momento de descanso.
Chico foi um cãozinho muito ativo, feliz, brincalhão e afetuoso. Brincava de bola, mas ficava de saco cheio muito rápido. Gostava mesmo é de brincar com um brinquedo de osso feito de pano, jogando para cima e para baixo, buscando onde quer que fosse. Da mesma forma, adorava brincar com potes e garrafas de plástico vazias, mordendo e fazendo barulho por onde quer que fosse.
Em fevereiro de 2021, caminhando pela rua de madrugada, Chico achou um osso e mastigou, dando uma engasgada que nos deixou preocupados. No dia seguinte o levamos à veterinária e ela nos disse que aparentemente ele estava bem, e indicou um ultrassom abdominal para conferir se o osso ainda constava no sistema digestivo dele. Não foram encontrados vestígios de osso, mas foi descoberto um tumor em seu baço já em estado crítico. Chico fez a cirurgia de remoção do baço, teve hemorragia e precisou de transfusão sanguínea. Se recuperou bem, fez quimioterapia e com a imunidade baixa acabou tendo que lidar com outras questões: problemas renais, bactéria no tártaro do dente, dermatites, cálculos na uretra, infecções nos ouvidos… Essas questões o impediam de sair à rua para evitar pegar outras doenças.
Chiquito viveu o melhor que pôde nesse tempo, mesmo com tantas debilidades. Foi em sítios, em fazendas, viajou, interagiu com muitas pessoas, foi em parques, praças, diferentes casas de familiares e de amigos. Tomou bastante sol enquanto vigiava a rua aguardando seus amigos passarem para que as fofocas pudessem ser espalhadas.
Pouco antes do carnaval de 2024, Chiquito teve de lidar com uma prolapsia retal, que foi bem insistente em sua ocorrência, fazendo com que ele tivesse que passar por seis procedimentos cirúrgicos e duas cirurgias mais complexas até descobrir um novo tumor que se desenvolveu rapidamente e desordenadamente no seu intestino, bem próximo do ânus. Foram várias internações que ajudavam nos sintomas, mas que não eram eficazes contra a causa do problema. Nenhum tratamento mais seria possível.
Foi na manhã de 30 de Março de 2024 que Chiquito, já sem conseguir movimentar as patas traseiras e nem as dianteiras, deu seus últimos suspiros, recebendo muito carinho e amor, deitado no chão ao lado da cama, lugar que ele tanto gostava de deitar. Ele sabia que estava de partida, e só aguardava a autorização de embarque de seus tutores que tanto o amam, e que fizeram de tudo para que ele tivesse a melhor vida possível.
Chiquito deixou muitas memórias agradáveis, um verdadeiro Cãopanheiro, momentos inesquecíveis, uma massa de pessoas que o amavam, indo viver no paraíso dos animais, onde se encontra tantos outros seres que fizeram da vida algo que valesse a pena de ser vivida. Lugar onde apenas bons humanos conseguem ir, pois estar rodeado de bichanos incríveis é o melhor pós-morte que alguém poderá ter.
Vá em paz Chico, você fará muita falta em nossas vidas.


Ruim demais para ser mentira #4

Ondas

Quando eu era pequeno eu tinha muita curiosidade em saber como eram feitas as ondas do mar. Me dava muita curiosidade aquela água que se enrolava e subia, quebrava, chegava na areia e voltava. As ondas sempre me impressionaram.
Íamos muito para a Ilha de Guriri, norte do Espírito Santo, durante minha infância nos anos 90. Eu conhecia cada pedaço daquela ilha, caminhava e pedalava muito por lá, e foi exatamente nas praias desse lugar que meu pai me ensinou a pegar jacarezinho acompanhando as ondas. Ele também me ensinou a não tomar caldo toda vez que a onda crescia na minha frente. A ideia era bastante simples: quando a onda subia, você pulava de ponta no meio dela, cortando a água e saindo do outro lado.
Eu gostava muito de ficar no mar. Eu me sentia super corajoso e costumava nadar sozinho quando não conseguia companhia para entrar na água. Inclusive, uma cena comum da minha infância consistia em eu sair da água sem entender o lugar onde eu estava, e eu sempre parava algum adulto pra me dar a mão e me ajudar a achar meus pais na faixa de areia. Sim, a maré sempre me levava, e aparentemente ninguém se dava conta disso (ou não se importavam).
Minha irmã, alguns meses mais velha que eu, costumava me explicar o funcionamento de várias coisas. Para mim ela era como uma “Sábia da Montanha”, sempre aparecia com as respostas que eu precisava. Especificamente nessa época em Guriri, ao ser perguntada sobre a formação das ondas do mar, ela me disse que no mar haviam mulheres deitadas que ficavam se enrolando na água, e assim surgiam as ondas.
Esse foi um imaginário que ficou na minha mente por muito tempo. Sempre que a onda subia, eu pulava de ponta e abria os olhos dentro da água salgada pra tentar encontrar essas mulheres. Eu fazia isso com uma certa frequência, e na minha memória atual consta apenas uma visão turva e escura da vida aquática. Além da lembrança de ter sempre os olhos muito irritados ao voltar da praia.
Nunca encontrei essas mulheres, mas eu seguia imaginando qual seria o tamanho delas naquelas ondas gigantes que os surfistas ousavam surfar no Hawaii. Eu também ficava imaginando quantas mulheres estavam dentro da água para esse tanto de onda ser formada ao mesmo tempo em vários lugares distintos. Como elas respiravam? Na minha cabeça, as mulheres dentro da água seriam como aquelas atletas de nado sincronizado, que se movem coordenadamente dentro da água. Talvez a modalidade olímpica tenha nascido a partir dessa ideia. Mas acontece que meus esforços em encontrar essas mulheres sempre foram em vão. Nunca as encontrei.
***
Recentemente eu questionei minha irmã sobre essa história, se ela se lembrava disso. Para minha surpresa, ela se lembrava sim. De acordo com ela, essa ideia veio de alguma abertura do Fantástico ou da novela Mulheres de Areia, que mostrava umas mulheres se tonando água ou areia, algo do tipo. Ela via essas coisas na televisão e sempre me contava suas descobertas. Eu cresci achando muitas coisas de forma equivocada e fantasiosa. Talvez eu deva ser mais grato à ela por me fazer viver uma fantasia criativa/racional. Toda vez que escrevo uma memória, me traz uma felicidade por ter uma imaginação fértil. Hoje sabemos que Yemanjá e Poseidon se escondiam das minhas buscas, bem como as sereias encantadoras de marinheiros. Essas pessoas achavam que talvez eu fosse me perder no mar, de uma forma que eu não pudesse pedir ajuda pra achar minha família novamente. E, se assim fosse, eu poderia saber como as ondas são formadas.

Definições…

Belo Horizonte, 23 de Fevereiro de 2024
Manhã muito chuvosa, fria, cinza, fechada…

Me detive um tempo tentando compreender o que sinto neste momento. Fiquei pensando muito se o termo apropriado seria algo como “angústia”. Fiquei pensando se escrever sobre isso me tiraria um pouco desta dor. Busquei em diferentes dicionários esses significados, mas a racionalidade e a objetividade talvez não caibam neste momento.
O Priberam me diz que o termo significa estreiteza; grande aflição acompanhada de opressão e de tristeza. O Michaelis traz o termo como perda de espaço ou de tempo; carência, falta. O Dicio me diz que o termo diz respeito a uma ansiedade física acompanhada de dor; agonia, ansiedade, apreensão, aperto. A Infopédia traz como aflição, ansiedade, agonia. Cambridge traz como aflição; ansiedade. Aulete coloca como ansiedade intensa; aflição; agonia.
Destas pesquisas, apenas três me retornam significados outros, de ordem mais profunda. O termo aparece como experiência metafísica através do qual o homem toma consciência do ser; ou sentimento de ameaça que não se consegue determinar nem medir, sendo próprio da condição humana; também como a consciência da responsabilidade do homem que decorre de sua infinita liberdade; por último uma inquietude metafísica e moral, como consciência de um destino pessoal sob o signo da liberdade ou da ameaça do nada.
Não, nada disso me ajuda.
Fico pensando no quanto vivenciar essas situações limítrofes entre a vida e a morte pode ou não ser interessante, no quanto refletimos sobre isso tudo, e em como nossa ansiedade nos impede de sair de um lugar, qualquer lugar. Eu fico imóvel com um nó na garganta. Apesar de tudo que tenho lido e refletido sobre a morte, acho que eu ainda não sei lidar com situações que se aproximam do risco da passagem para outro plano, se é que isso existe.
Talvez eu tenha que me acostumar com o tamanho do NADA que encontramos quando precisamos de respostas, ou mesmo de caminhos.
O tempo nublado não me ajuda a ver o horizonte.
O vento frio não aquece meu coração.
Eu não sei definir o que significa angústia, e nem se é isso mesmo que sinto agora.



“Pensar incomoda como andar na chuva, quando o vento cresce parece que chove mais…” Fernando Pessoa.

Lapsos de Tempo #6

Pedrinhas – Lugar Mágico

Em toda grande metrópole há um sítio grandemente benquisto por seus habitantes locais. Imagina um lugar que funciona como um ponto de encontro para fortalecer o lado social; um lugar cujos turistas e viajantes fotografam sem piedade e de maneira predatória buscando o ângulo perfeito; um lugar que, de tão nobre, mostrou ao mundo toda sua magia e encanto. Hoje me dedicarei a apresentar Pedrinhas, lugar mágico no pequeno grande povoado de Bonito Cenário Profundo.
Bonito Cenário Profundo emergiu como um povoado a partir da ocupação dos grandes vales que se encontram ao centro de uma placa tectônica estável. Geologicamente monótono, o povoado ganhou fama na década de 30 por apostar alto em uma arquitetura fantasiosa, que remetia à um certo futurismo Jetsoniano, uma visão bem à frente de seu tempo. O povoado desenvolveu-se com vários campos tecnológicos de extração, exploração, estudos e indústrias do mineral abundante em seu solo, o Gnaisse, que viria a ser o símbolo de que o porvir já havia chegado ao presente, e que o presente, agora, já era coisa do passado.
O circuito de produção e desenvolvimento era tão complexo para a época, que foram necessários 90 anos para que várias ideias de urbanismo fossem colocadas em prática, mesmo depois da compreensão falida em relação ao modelo de cidade futurista que foi pensada naqueles tempos. O Gnaisse, rocha de extrema dureza, era retirado do solo para servir de estrutura das torres que eram utilizadas de escritórios e residências. O espaço deixado pelas rochas no solo, era ocupado por água de rios, fazendo com que os vales se enchessem rapidamente e inundassem as cavernas rochosas por baixo da cidade.
Com o passar do tempo e a indisponibilidade de recursos para extração e estudos, além do baixo investimentos em tecnologias de produção, as construções em Gnaisse tiveram que ser abandonadas, transformando o povoado de Bonito Cenário Profundo em um povo fantasma, um grande vale úmido com imensas torres de pedra.
A virada de jogo apareceu quando pessoas de várias partes do mundo, aterrissavam na região para conhecer a cidade perdida de Gnaisse. Várias lendas, mitos, boatos e rumores correram os quatro cantos do globo terrestre, e a cidade compreendeu um verdadeiro boom populacional, com muitas pessoas interessadas em viver na região.
Acontece que com o passar dos anos, parte da história se perdeu. Quem vivenciou o auge político-econômico da região já não se encontra mais neste plano. Porém, um resquício da história pode ser vista a olhos nus na região que ficou conhecida como “Pedrinhas”. Pedrinhas é um complexo de três grandes blocos de Gnaisse, possivelmente utilizados na construção civil, e que se tornaram parte definitiva da história que é contada hoje. Os blocos já foram solo, já foram torres, e agora são bancos.
Os moradores que costumam se encontrar no sítio arqueológico são autodenominados Gnaissianos, e eles podem sentir forças mágicas que atuam na região dos blocos. Há quem diga que existe um momento do dia em que se pode escutar vozes vindas dos blocos, mas é apenas em um momento específico em que o sol ilumina por igual as três grandes rochas.
O Governo local conseguiu um alvará no Ministério Internacional de Exploração do Turismo em Lugares Mágicos para utilizar o rótulo de “Lugar Mágico”, comprovando que muito do que se falava sobre a região é, de fato, realidade. Pedrinhas entrou na lista dos lugares mais visitados do mundo, perdendo apenas para Paris na França, mas conta com o maior número de hashtags publicadas nas redes sociais, liderando as buscas por turismo fotográfico.
Pedrinhas, Lugar Mágico, badalado e agitado no coração cêntrico da região monótona de Bonito Cenário Profundo.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação

Lapsos de Tempo #5

Trajetos com pensamentos fluidos

Para dar movimento impulsiono com meu pé direito ao mesmo tempo em que salto passando a perna por cima do banco. A rotação do pedivela me permite fazer todo o movimento sem parar a aceleração. Com o pé esquerdo posicionado ajusto meus ísquios para ter maior apoio. Olho adiante e traço uma rota imaginária, meu pensamento como se fosse um drone transitando nas ruas e deixando um rastro de sua passagem. Tenho meu caminho planejado, só preciso transita-lo. Um quarteirão adiante está situado o local onde se produz minha pizza favorita. Lembro de uma massa fina, com molho de tomate, folhas, queijo vegetal, alguns legumes e palmito. Meu estômago ronca ao perceber a fragância suave do forno que está com a chama acesa. Passo direto e viro a primeira esquerda, no semáforo. É uma rua mais larga, mais movimentada, mais longa. Desço até o semáforo que está aberto, cruzo a avenida e sigo adiante. Nesta rua estudei por dois anos. Fiz algumas amizades, tive alguns amores, aprendi bastante nesta época. Tinha acabado de sair da adolescência, já era um adulto, mas ainda possuía a vitalidade juvenil de perambular por estes lados. Vejo o local onde estudei, abandonado, sujo, morada de ratos e entulhos. O que aconteceu para chegar à essa situação? Passo direto, vejo o restaurante que não me deixaram entrar para almoçar enquanto estudante na região. Afinal, “um punk vestido a caráter não pode frequentar um lugar como esse!”, é proibido. Melhor passar fome do que me misturar com essa gente de caráter duvidoso. O restaurante está razoavelmente cheio, alguns poucos lugares vazios, todas as pessoas desfilando seus melhores trajes empresariais e sorrisos falsos. Dou uma risada irônica ao pensar nisso tudo, e sigo rotacionando o eixo do pedal, que rotaciona o eixo central de bicicleta. O movimento é contínuo. Depois do próximo semáforo, cortaremos uma avenida larga, de oito pistas, mão e contramão. É uma avenida interessante, com coqueiros no canteiro central. Desvio de duas tampas de bueiro que indicam que embaixo do pavimento há córregos, presos e algemados na claustrofobia da tubulação canalizada. Sigo adiante na descida para a praça da Igreja. É uma descida relativamente íngreme, onde preciso ter cuidado para não ser atropelado. Na primeira esquina, um carro se detém ao ver o sinal de “PARE” bem em frente a um outro restaurante onde eu costumava almoçar. Era caro, mas pelo menos me deixavam entrar para comer. A comida era boa, com muitas opções para quem é ovolactovegetariano. Na esquina de baixo chego na praça arborizada, que a Igreja transformou em um grande estacionamento. Penso comigo mesmo que nem se pode mais chamar isso de “praça”. Sigo direto frustrado com a imagem do apocalipse motorizado em um local que poderia, muito bem, estar liberado para o ser humano. Viro à direita, acesso a pista exclusiva de ônibus, mas que não possui separação física em relação às outras pistas, e aumento a velocidade. Esta rua já possui um movimento de automóveis de forma mais intensa. Acesso o corredor que foi criado entre os veículos que aguardam a luz verde, e me detenho por sobre a faixa de pedestres. Olho para a Avenida, sinto um fluxo de brisa fresca misturada com o calor dos motores que roncam atrás de mim. Na luz que me permite seguir, arranco a bicicleta do chão e tento forçar uma velocidade maior. Tenho sempre receio de que algum veículo mais veloz passará por cima de mim nessas arrancadas. Sigo para a região onde se situam vários hospitais e clínicas, logo após a Avenida principal da cidade. Vejo o Pronto Socorro e surge uma memória ruim de um atropelamento que sofri alguns anos atrás. O motorista ignorou minha presença e me acertou de lado. Parei no pronto socorro com fraturas no joelho e no calcanhar, 6 meses de molho, fazendo fisioterapia para conseguir voltar com as atividades rotineiras. Ainda acho que tive sorte de não ter sofrido algo mais grave. Ao passar pela portaria do Hospital agradeço a qualquer força da natureza por não ter sofrido nada mais preocupante. Sigo adiante, vou cruzar o viaduto e já chego em casa. O viaduto possui uma subida leve, mas eu conheço alguns atalhos para cortar caminho e evitar o pequeno morro. Geralmente eu gosto de subir morros, sentir minhas panturrilhas trabalhando, mas hoje eu estou cansado. Só quero chegar em casa, tomar banho e descansar. São dois quarteirões planos por baixo do viaduto, uma leve subida à esquerda, dois quarteirões de leve subida à direita, mais três quadras de plano e já me encontro do lado de lá. É um trajeto onde passo contra a mão dos automóveis. Corro risco, mas é necessário para evitar a fadiga. Cruzo o viaduto fazendo um movimento perpendicular, aproveitando a detenção dos automóveis no semáforo do início do viaduto. Passo em frente um bar onde tem as melhores batatas fritas, aquelas de verdade, pedaços grandes, frescos e com casca. Apesar da água na boca que surge com a lembrança, prefiro seguir mais um quarteirão e já avistar minha humilde residência. Acelero para ultrapassar a linha de chegada imaginária e solto um suspiro aliviado por chegar em casa com vida. Cansado, exausto e endorfinado. Passo a perna por cima do banco fazendo um movimento de saída e salto da bicicleta de forma ágil. Apoio a bicicleta na parede enquanto abro o portão. Guardo a bicicleta com tranca, pois no bairro são vários os furtos e roubos deste tipo de veículo. Abro a casa, tomo um banho e me sento no sofá para relaxar. Não consigo parar de pensar que eu deveria ter comprado a pizza logo quando subi na bicicleta.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação

Corpo utópico

Hoje escreverei sobre utopia. Mas não sobre política, nem horizontes, nem fábulas, não vou trazer autores, mas talvez eu traga. E talvez eu fale sobre tudo, e sobre nada. Hoje tentarei ser espontâneo. A utopia a que me refiro hoje, é o lugar inexistente que passamos a saber da existência. Topia, vem de topos, lugar. A letra U que antecede a palavra sugere uma negação à esse lugar. Utopia se define, então, como um lugar sem lugar, um não-lugar, um lugar inexistente. Um lugar idealizado, fantasiado, perfeito, uma quimera.
Trago esse preâmbulo confuso para pensarmos nos nossos corpos, organismos físicos que não compreendemos muito bem como funciona. O corpo quando é dissecado em vida, possui um complexo de órgãos, músculos, tecidos, células, líquidos e outras matérias que trabalham em conjunto fitando manter a vitalidade dos seres humanos.
Nós raramente pensamos no lugar que nosso corpo e suas complexidades habitam. Porque comemos o que comemos, porque nos movimentamos, porque pensamos, nos relacionamos, porque nos excitamos e nos empolgamos com alguma coisa?
Há algo que reside no subjetivo de nossa existência que não possui um lugar concreto. E agora, enquanto escrevo, me pergunto se o corpo é uma utopia ou uma heterotopia, lugar utópico com posicionamento em um lugar real. Mas penso no que compõe o corpo, que sabemos que existe, que está lá, e que não nos damos conta da importância ou da existência.
No primeiro semestre do ano passado li o texto “O Corpo Utópico” de Michel Foucault, lançado pela N-1 Edições. Entre os exemplos que o filósofo cita no decorrer de suas linhas, algumas definições me chamaram a atenção. E me impressiona o fato de eu guardar esta ideia por tanto tempo antes de escrever sobre.
– O primeiro exemplo passa pela forma como descobrimos a existência de nosso corpo. Um bebê recém nascido, que passa seus dias com um universo muito limitado em relação ao corpo, aprende aos poucos que existe algo além de sua cabeça, e vai descobrindo seus membros e como controlá-los. Cada descoberta traz uma imensidão de possibilidades, e aqui cabe a analogia com criar um lugar para o que antes era inexistente, ou se desconhecia a existência;
– O segundo exemplo perpassa toda uma questão relacionada à ordem do sensível. São corpos que, apesar de se situarem na ordem material, nos são invisíveis. Nesse sentido, a exploração através do tato, do olfato, da audição, do paladar e da visão nos fazem conhecer, de outras formas, outros tipos de interação com diferentes matérias. Sentir e fazer sentir nos possibilita localizar algo que não conseguíamos imaginar ou prever. Olhar para a pele arrepiada é uma experiência diferente de sentir arrepios, ou de causar arrepios em alguém. A sensação se localiza na interação, e logo se torna utopia novamente;
– Por último, o desaparecimento de um lugar físico, de uma matéria, de um corpo. A transformação de algo localizado em uma utopia. O corpo não se deixa reduzir tão facilmente, ele quer existir em algum lugar. O corpo possui as próprias fontes de utopia, de imaginação, de sensibilidades, de localização ou perda de qualquer coisa. O que nos constitui como sujeitos, que nos faz pensar, refletir, nos movimentar, nos relacionar e desenvolver novos espaços, reais ou virtuais. O corpo é atuante e resistente ao esquecimento, até que é acometido por alguma doença ou debilidade em suas diferentes funções. Foucault escreve que em situações de enfermidade o corpo deixa de atuar, de sonhar ou de imaginar, e passa apenas a tentar sobreviver, resistindo ao que lhe destrói. O lugar real do corpo se torna um lugar desconhecido, talvez esquecido. O corpo perde suas subjetividades e funções para tornar-se apenas uma coisa, uma carcaça de anticorpos que busca sentido para a vida.
Todas as coisas existentes e inexistentes estão dispostas em relação ao corpo. Porém para cada corpo, uma disposição diferente de topias e utopias. O corpo é o marco zero onde desenvolvemos nossos significados, onde localizamos as utopias, de onde irradiam todos os lugares possíveis e impossíveis.

3 anos

Hoje se completam 3 anos do falecimento do meu pai. Eu gosto de sentar na frente do computador e escrever algo em sua homenagem sempre que chega o dia 25 de Janeiro. Esse dia é dedicado à escrita sobre a morte, sobre a vida, sobre as relações e sobre várias coisas que me lembram dele, ou dos momentos que pudemos vivenciar juntos. É uma forma de localizar a memória guardada em alguma utopia do meu cérebro e transformar em algo real.
Trago este tema da utopia porque penso na linha da vida em que meu pai nasceu, viveu, e teve o funcionamento de seu corpo interrompido por conta de um tumor. Fico aqui pensando em tudo que ele descobriu e vivenciou durante sua existência no plano terrestre. Tudo que ele pôde significar em relação ao que o afetava e interagia com ele. E eu me incluo nesse espectro luminoso de sentidos. Muitas dessas descobertas foram feitas junto à mim, ou em relação à mim, e muitas outras apenas me foram transmitidas.
Durante muito tempo, eu ficava me perguntando sobre o sentido da morte, porque morremos, e essas coisas. Mas acho que da mesma forma que nós topificamos o que está ao nosso redor na medida em que nos desenvolvemos, nos transformamos em utopias quando precisamos lidar com tudo que ainda nos é desconhecido. Não sabemos nada sobre doenças, até que precisamos lidar com alguma. E lidamos com nossas próprias doenças e com doenças das pessoas com quem nos relacionamos, com quem temos afetos. Tentamos localizar o corpo em algum lugar na esfera da vida, como se fosse um alfinete em um mapa-mundi, e nossos esforços de conter uma possível utopia dos corpos é incansável.
O corpo doente é apenas uma coisa que será mantida viva por profissionais da saúde, por fármacos ou por máquinas, e aí já não importam mais as subjetividades. Importa apenas o esforço em adiar a utopia da matéria por mais algum tempo.
E eu fico pensando aqui em todo o processo que meu pai passou. Foram apenas 3 meses da descoberta de um tumor até seu falecimento. E o corpo dele foi, praticamente, reduzido a algo que necessitava um esforço em ser mantido vivo, não importa qual procedimento cirúrgico, laboratorial, robótico ou químico seria utilizado para isso. Todos nos esforçamos com essa finalidade.
Talvez eu escreva isso sendo cruel demais com todo o processo, ou talvez não. Na hora tudo parece ser o melhor método, e mesmo depois nós ainda não sabemos muito bem o que foi tudo isso. No calor do momento eu escrevi sobre o processo de morte, e como significávamos tudo o que acontecia. Foi tudo muito tenso, e corrido, e exaustivo, e cansativo, e triste. Celebrávamos cada melhora como se ganhássemos um campeonato, e nos abatíamos a cada notícia desfavorável que chegava. Sempre achamos que algo mais poderia ser feito, ao mesmo tempo em que temos a certeza de que tudo que era possível de ser feito, foi feito. É um sentimento muito ambíguo e contraditório em relação à tudo que aconteceu.
Mas, enfim, prefiro ainda acreditar que meu pai foi descansar de tudo que ele vivenciou e descobriu. De todas as relações que ele significou e que já era hora de fazer o corpo descansar da luta contra o surgimento da utopia.
E ainda que o corpo do meu pai tenha se tornado novamente uma utopia, o lugar que ele ocupa em minha vida segue muito bem localizado na minha memória, nos meus afetos, as minhas topias utópicas.
Cuidem de seus corpos.

Cinzas sendo depositadas no rio. Meu pai adorava nadar. A água será a última topia do corpo dele.




Treino de desenho

Desde o final do ano passado eu tenho tentado desenhar casas que eu salvo do Pinterest, utilizando sempre uma mesma estética, praticamente os mesmos materiais e tals. Tem sido uma atividade bem massa e eu consigo perceber uma evolução no quesito desenho de observação e na utilização da imaginação para compor e colorir.
Ano passado ou retrasado, não me lembro, tinha feito uma pintura em aquarela de um conjunto de casas ocupadas. Eu curti muito o desenho e a pintura, mas acho que o céu hoje não me agrada a forma e as cores que utilizei. Depois publico foto dela (acho que me esqueci de publicar ela aqui, rs). Mas isso me deu uma certa vontade de estudar mais, de arriscar mais.
Ano passado cheguei a fazer 4 desenhos/pinturas de casas utilizando marcadores chanfrados e bico de pena com tinta nanquim. Foram experiência interessantes, pude desenvolver bem a imagem e também aprendi muito a usar os marcadores a base de álcool. São os mesmos marcadores “tons de pele” que eu tinha comprado um tempo atrás e que até cheguei a fazer alguns desenhos com eles em um breve teste. Minha amiga Jay tinha comentado que os marcadores a incomodavam pelo fato de que ficam muito “marcados” na imagem (e, de fato, ela faz umas passagens de tons bem suaves, muito diferentes da marca que os marcadores deixam no papel), e eu fiquei pensando em como poderia tentar escapar desse tipo de efeito mais grosseiro. Ainda que várias destas primeiras imagens possuam traços bem marcados, com o tempo eu fui aprendendo a utilizar melhor as potencialidades destes marcadores. As fotos a seguir mostram a sequência dos desenhos no sketchbook que eu separei exclusivamente para isso.

House-sketcher depois de estudar melhor

Depois de um tempo pintando somente com as cores “tons de pele” do kit que eu tinha comprado, decidi investir em mais cores, pois me sentia muito limitado aos tons de marrom. Infelizmente esses marcadores são muito caros, e acabo comprando 1 ou 2 unidades apenas. Mas eu descobri que o ideal é sempre comprar cores parecidas, um tom claro e um tom médio/escuro, pois assim fica mais fácil fazer as passagens entre as cores.
E eu fico falando tudo isso sobre cor, mas eu nem sei se isso necessariamente faz sentido, pois sendo daltônico essa parte técnica é um pouco mais complicada.
Após estes estudos, eu acabei comprando um curso de desenhar casas no Doméstika. É um curso bem básico, mas que eu curti muito. Me senti bem confiante, por exemplo, de desenhar as casas sem fazer esboço com lápis, já começar com o bico de pena e o nanquim, na tora. Me senti muito profissional fazendo isso, rs. Também acho que o curso me ensinou a utilizar melhor o espaço do papel, centralizando a casa e deixando espaços vazios no entorno também. Isso deixa o desenho mais leve. Outra coisa foi a utilização da cor branca. No curso, o professor utiliza uma Posca branca para fazer uns efeitos de luz que eu achei bem interessante. Ele também ensina bem a fazer a degradê com os marcadores, transformando a borda grosseira da tinta em algo beeeem mais suave. Outra coisa foi a confiança em agregar elementos do meu imaginário no desenho. Antes eu seguia a foto à risca, alterando poucas coisas. Nos próximos sketches vocês perceberão que as casas possuem mais elementos e mais ousadia também. Acho que curti esses modelos.

Todos os desenhos foram digitalizados e levemente tratados para se assimilarem melhor ao que está no sketchbook. Subi um pouco o contraste, diminuí o brilho e dei uma calibrada nas cores (mas para um daltônico, pode ser que esteja tudo diferente, hahaha). Quando vocês me fizerem uma visita, peça para ver meus sketchbooks, e aí vocês podem tirar as próprias conclusões.
O projeto final lá do Doméstika pode ser visto clicando aqui.
Enfim, gostaria que vocês pudessem me fornecer opiniães e comentários sobre esse processo também. O que acharam?

Novidades na loja

Simmmm, panos de prato para pessoas revoltadas e descoladas (ao mesmo tempo) estão disponíveis para compra na loja virtual.
Algumas estampas são exclusivas de panos de pratos, outras são aproveitamento de telas das camisetas.
Os panos de prato são feitos daquele material chamado PÉ DE GALINHA, que dizem ser os que mais secam e os que mais duram. Pelo menos é o que reza a lenda.
Infelizmente os de cor preta são levemente mais caros que os brancos.

Queimando olho

Domingo de manhã eu queimei meu olho esquerdo. Eu não estava brincando com fogo, nem olhei um eclipse sem raio-x. Não teve calor, nem chamas e nem foto-ofuscamento. Foi uma queimadura química provocada por agentes tipo C-Corrosivos.
Traduzindo a situação, eu guardei a manhã de domingo para tirar fantasmas das telas de serigrafia. Os fantasmas são manchas químicas e gordurosas que se fixam nas telas, e ainda que não dê nenhum problema, elas podem dificultar a fixação da emulsão fotossensível, fazendo com que a tela abra nas regiões frágeis e a impressão fique manchada.
Eu comprei o Remoclean Removedor Mono, comprei luvas de neoprene resistentes à corrosão, comprei óculos de segurança e máscaras. Foram 3 sessões de limpeza, e a ideia era tirar os fantasmas de quase todas as telas desgravadas que tenho aqui no meu estúdio. Nas duas primeiras sessões ocorreu tudo certo. Passo o produto, aguardo 15 minutos, jateio com água e a tela fica extremamente limpa, sem vestígios que fora outrora utilizada.
Na última sessão, domingo, me aguardavam as maiores telas, que eu uso com menos frequência e por isso eu estava em um clima mais tranquilo e, aparentemente, mais desatento. Eu logo coloco os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e já inicio o processo de passar o Remoclean nas telas grandes. Eis que o primeiro momento horrível de 2024 aparece.
A esponja de nylon agarra na lateral de uma das telas e ricocheteia em minha direção parte do produto químico, corrosivo, ácido. Foi a pior maneira de descobrir que eu havia me esquecido de colocar os óculos de proteção. Várias coisas passaram pela minha cabeça. Com o impacto e o início da ardência, minha primeira reação foi tapar o olho com a mão e correr em direção a um tanque. Segurei minha pálpebra aberta e deixei água corrente escorrer no olho esquerdo, que ardia em chamas. Não, eu não enxergava nada, tudo embaçado à minha frente. O nervoso que eu tenho com qualquer coisa que envolve olhos foi deixado de lado para que eu pudesse salvar minha visão. Meu olho ardia como se fosse uma bola de fogo.
Após alguns minutos debaixo da torneira do tanque, entrei em casa para enxugar a cara enquanto acordava minha companheira com os dizeres: “ACORDA, ME LEVA PRO HOSPITAL, QUEIMEI O OLHO!”.
Foi difícil compreender que eu poderia perder parte da visão naquele momento. Eu lacrimejava muito, e eu ainda não sei se eram lágrimas provenientes da resposta do corpo à queimadura ou ao choro pela ardência e pelo vacilo que eu tinha dado naquela manhã. Minha companheira levanta correndo, estava conversando com alguém no celular. Ela me pergunta “Qual produto que é? Quais os ingredientes?” e eu só consigo responder que eu não sei, só sei que é corrosivo. Ela conversa com uma amiga que é oftalmologista, e nós buscamos por informações na embalagem do Remoclean. R20/21/22-35 S 7/9 – 26-36/37/39-45. Esse código são as únicas informações que aparecem. Acessamos o Boletim Técnico no site da empresa fabricante, e na seção dos ingredientes um belo “Segredo de Fábrica” frustra nossa intenção de descobrir como tratar a queimadura.
Meu olho ardia, e eu seguia segurando minhas pálpebras abertas debaixo da torneira aberta com água corrente. Menos mal que, apesar da ardência e do embaçamento, eu conseguia enxergar alguma coisa. Saímos de casa, seguimos para o hospital para consultar com um plantonista. Após um tempo de espera razoável tenho meu olho esquerdo analisado por um profissional.

Ele me diz que eu tive sorte, pois havia apenas uma irritação na parte branca do olho, nada atingiu córneas.
Ele me disse que eu ainda ficaria uns dois dias com muito incômodo no olho.
Ele me disse que eu deveria pingar um colírio anti-inflamatório de 6 em 6 horas, durante 5 dias.
Ele me disse que eu deveria pingar colírio comum de hora em hora, pra ajudar na lubrificação.

Hoje é meu último dia de colírio anti-inflamatório. Ele arde. Eu nunca tive o costume de usar colírio. Não me agrada o gosto que surge na garganta após pingar qualquer colírio nos olhos. Eu não sabia pingar, sempre errava a mira. Depois de alguns dias pingando, já me tornei expert em pingar somente no olho. A prática leva à perfeição. E eu que jurei que sairia do hospital com um tapa-olhos, saí apenas com uma sensibilidade à luz. Não conseguia ver telas, doíam meus olhos. Eu tinha uma sensação esquisita de que havia areia debaixo da minha pálpebra superior. Meu olho inchou, ficava fechado bastante tempo, e as pálpebras grudavam com a quantidade de remelas que surgiam. Na terça-feira meu olho amanheceu aberto, com muito menos incômodo, mas ainda lacrimejando bastante.
Tudo passou pela minha cabeça nesses dias para cá, tudo.

Eu ainda não tive coragem de limpar os fantasmas das telas maiores.

Animaçãozinha relax de momentos tensos